Há pouco tempo, precisamente em 2019, publiquei um artigo com
dois orientandos como coautores (e.g. Lucas Franco e Júlia Pedreira), sobre o
papel da intuição em química medicinal. Foi uma ótima experiência em que o “produto
final” foi fruto do trabalho de 6 mãos e 3 cabeças...! Mas só uma “branquinha”...!!!!
(Veja: JGB
Pedreira, LS Franco, EJ Barreiro, Chemical Intuition in Drug Design and
Discovery, Curr Top Med Chem 2019, 19, 1679).
Dentre as abordagens possíveis para tratar o tema, mais afeito
aos físicos do que aos químicos, decidimos que deveríamos fazê-lo a partir de
dados cronológicos que pudessem indicar a efetiva contribuição da intuição
química na química medicinal! Este foi o desafio que nos impusemos, sem
procurar responder a todas as perguntas possíveis, tais como: quantos fármacos
e quando foram descobertos/inventados por decisões oriundas da intuição química
de seus descobridores? Esta pergunta está debatida no âmbito da publicação, mas
menciono aqui um exemplo: a cimetidina, o primeiro fármaco da classe dos antagonistas
seletivos de receptores histaminérgicos do sub-tipo 2, como medicamentos
anti-úlcera, descrito na segunda metade do século passado. Aliás, a maioria dos
fármacos de nosso arsenal terapêutico contemporâneo, nasceram no século 20!
Desta abordagem emergiu uma constatação sobre a inclusão de
termos relativos a conceitos, princípios e temas da Química Medicinal. Uns mais
cativos e outros adotados de outras disciplinas próximas ou nem tanto! Dependendo
muito mais da motivação do autor que o empregou originalmente, talvez para
introduzir um tempero de “criatividade”, num manuscrito excessivamente chocho,
em alguns casos.
O nosso manuscrito, mencionado acima, foi redigido em inglês e me
chamou atenção a quantidade de termos surgidos a partir da virada do século,
que se “empoleiraram” no vocabulário da Química Medicinal moderna, muitos deles
adaptados ou repetidos em contextos distintos daquele originalmente empregado.
Dentre alguns, decidi tratar aqui, como tema desta postagem, as “estruturas
privilegiadas”! De cara já noto que deveria ter sido adotado o termo estruturas
químicas privilegiadas ao invés de estruturas privilegiadas apenas, pois
muitas formas estruturais são conhecidas e a qualificação de estruturas químicas
já teria um sabor de maior precisão. Cabe mencionar que em agosto de 2014 tratei deste mesmo tema aqui,
como que apresentando-o a vocês. Desta feita, venho ilustrar sua relevância
como uma possível estratégia da Química Medicinal para identificar novos hits
ou ligantes de um dado biorreceptor com efetivas propriedades drug-likeness. Senão
vejamos: foi B. E. Evans e colegas da Merck Sharp & Dohme (MSD) quem pela
primeira vez o empregou em manuscrito publicado no Journal of Medicinal
Chemistry (vol. 31, p. 2235) e intitulado Methods for Drug Discovery:
Development of Potent, Selective, Orally Effective Cholecystokinin Antagonistst,
aonde foram relatados os efeitos antagonistas do receptor A do hormônio
peptídico colecistoquinina (CCK), para o padrão molecular 3-amido-benzodiazepinas
(1), identificado a partir da asperlicina (2), uma micotoxina de fórmula
molecular C31H29N5O4 e peso
molecular 535 Da, encontrada em fungos Aspergillus alliaceus. Esta turma
da MSD, denominou o scaffold 1 como uma estrutura privilegiada nesta
publicação, onde os autores descreveram os resultados de extensos estudos sobre
a relação entre a estrutura química e as propriedades antagonistas de CCK-A deste
padrão molecular farmacofórico para receptores periféricos ou centrais de CCK.
Identificaram sua afinidade por outros tipos de receptores, tais como adrenérgicos,
serotoninérgicos, muscarínicos, angiotensina-1 e benzodiazepínicos, o que
originou o termo estruturas privilegiadas.
Desta forma, o uso de coleções de estruturas privilegiadas passou
a ser utilizada como uma estratégia válida da Química Medicinal para a identificação
de hits ou ligantes de candidatos a protótipos de novos fármacos e foi
incorporada ao glossário da International Union of Pure and Applied
Chemistry (IUPAC) de termos de Química Medicinal como: subunidade
estrutural que confere/antecipa desejáveis propriedades de fármaco a novos
compostos que as contenham.
Numerosas publicações posteriores adotaram esta terminologia e
consolidaram o conceito de estruturas privilegiadas como uma estratégia válida para
a descoberta/desenho de novos candidatos a fármacos no âmbito da Química
Medicinal, como o são o bioisosterismo; a simplificação molecular; a
homologação (e.g. LM Lima, MA Alves, DN Amaral, Homologation:
A Versatile Molecular Modification Strategy to Drug Discovery, Current
Topics in Medicinal Chemistry 2019, 19, DOI) e anelação; os fragmentos moleculares; os
análogos ativos; o reposicionamento de outros fármacos ou subunidades
moleculares de uma dada quimioteca; a otimização seletiva de efeitos adversos
(SOSA); as abordagens baseadas no ligante ou na estrutura do receptor, para
citar as mais empregadas.
Na próxima 28a Escola de Verão em Química Farmacêutica Medicinal programada para janeiro de 2022, em forma remota, discutirei este tema num curso-curto. Aguardem!!!
Obrigado
por lerem.
Leitura suplementar sugerida:
·
AA Patchett, RP Nargund, Privileged
structures — An update, Ann Rept Med Chem 2000, 35, 289.
·
CD Duarte, EJ Barreiro, CAM Fraga, Privileged
Structures: A Useful Concept for the Rational Design of New Lead Drug
Candidates, Mini-Reviews in Medicinal Chemistry, 2007, 7, 1108.
·
FRS Alves, EJ Barreiro, CAM Fraga, From
Nature to Drug Discovery: The Indole Scaffold as a ‘Privileged Structure’, Mini-Reviews
in Medicinal Chemistry, 2009, 9, 782.
EJ Barreiro, em Privileged Scaffolds in Medicinal
Chemistry: Design, Synthesis, Evaluation, S Bräse, Editor, Chapter 1: Privileged
Scaffolds in Medicinal Chemistry: An Introduction, 2015, pp. 1-15, Elsevier.