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sábado, 30 de janeiro de 2021

A evolução do processo de descoberta de fármacos (= drug discovery)

      O processo de descoberta de fármacos, que os autores de língua inglesa passaram a se referir como drug discovery, observou nas últimas quatro décadas significativas transformações como ilustro na Figura 1:

     AADD = desenho de fármacos baseado no análogo-ativo (analog-active drug design); HTS = rastreio de alto rendimento (high throughput screening); CombChem = química combinatória (combinatorial chemistry); GPCR = receptor acoplado à proteína-G (G-protein coupled receptor); LBDD = desenho de fármacos baseado no ligante (ligand-based drug design); desenho de fármacos baseado na estrutura (structure-based drug discovery); VS = virtual screening; FBDD = desenho de fármacos baseado em fragmentos moleculares (fragment-based drug design); X-DD, X = LB, SB, FB; h-b2R = co-cristalização do receptor b2-adrenérgico humano com agonista;

Figura 1

O período compreendido pela década de 1970, se inicia com a introdução, ainda tímida, de técnicas computacionais que permitiam o estudo de relações quantitativas entre a estrutura e a atividade de compostos de uma dada série congênere (QSAR). Além disso, a capacidade computacional era modesta e de alto custo. Com o aprimoramento e a popularização dos computadores pessoais, associado ao desenvolvimento significativo das então denominadas estações de trabalho (work stations; a primeira adquirida pelo LASSBio foi um modelo SGI-Octane da Silicon Graphics [SGI], em 1999), inicia-se a consolidação do emprego de técnicas de modelagem molecular de receptores a partir da elucidação de suas estruturas. Cabe menção que a descoberta do captopril (1) em meados dos anos 80. Este foi o primeiro fármaco anti-hipertensivo desenvolvido a partir do estudo do veneno da Bothrops jararaca, uma cobra venenosa brasileira, cujo veneno foi objeto de estudos por eminentes farmacologistas brasileiros como Maurício Rocha e Silva, Sérgio Henrique Ferreira e Wilson Beraldo, entre outros, que evidenciaram a existência no veneno da jararaca de um nonapetídeo com um resíduo C-terminal de prolina. Esta descoberta, motivada pela curiosidade em entender as severas lesões provocadas pela picada da cobra, levou a identificação dos seus efeitos bloqueadores sobre a enzima conversora de angiotensina (ECA). Esta foi caracterizada como uma metaloenzima Zn-dependente, responsável pela bioativação da angiotensina-I no peptídeo vasoativo angiotensina-II, capaz de promover aumento da pressão arterial pelos efeitos constritores que possui (veja post de 14/01/2012 = Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos (Parte VII); link).

Explorando o mecanismo catalítico da enzima contendo zinco, os Químicos Medicinais, da Abbott liderados por Miguel A. Ondetti & David W. Cushman, sintetizaram uma série de compostos com funções químicas ligantes de zinco, em geral possuindo o átomo de enxofre em suas estruturas e preservando o anel da prolina, presente no nonapeptídeo do veneno. O primeiro inibidor da ECA sintetizado foi o derivado succinil-(S)-prolina (Figura 2), que teve posteriormente o grupo succinila substituído por uma sulfidrila (-SH), preservando o scaffold prolina do peptídeo, aplicando, portanto,  o desenho de novos ligantes a partir do substrato o que caracteriza a estratégia do análogo ativo.

Este racional explica a natureza da estrutura química do captopril que foi 1000 vezes mais ativo que seu protótipo na inibição da ECA. O captopril (1) entrou no mercado em 1981 como o primeiro da classe de inibidores da ECA.

     Esta descoberta marca o início da década de 1980, como aquela capaz de reafirmar a época da descoberta racional de fármacos, iniciada pela descoberta do propranolol (2) e da cimetidina (3), por exemplo, representando a estratégia de desenho baseado no análogo ativo (Figura 1, AADD = analog-active drug design), que veio a ser denominada de desenho de fármacos baseado no ligante (do receptor) (i.e. ligand-based drug design).
     A possibilidade de desenhar novos fármacos racionalmente, usando estruturas de proteínas tornou-se uma meta de muitos biólogos estruturais. Podendo a descoberta do captopril ser considerada como um exemplo híbrido, na transição da abordagem AADD à SBDD, com algum “tempero” do conhecimento da estrutura do bioreceptor que veio a ser denominada structure-based drug design (SBDD), ilustrando a importância da contribuição dos avanços tecnológicos computacionais na elucidação 3D das estruturas dos biorreceptores dos fármacos. Hoje, embora ainda haja necessidade de alguns ajustes finos capazes de aperfeiçoar o processo, o desenho de medicamentos com base na estrutura dos biorreceptores é parte integrante da maioria dos programas de descoberta de medicamentos industriais e é o principal assunto de pesquisa de muitos laboratórios acadêmicos.

Já ao final da década de 1980 e início da seguinte, observou-se a evolução de técnicas de high throughput screening (HTS) que combinadas com as da química combinatória (combinatorial chemistry), deram origem às ditas técnicas hifenadas: HTS-ChemComb. Os resultados não corresponderam às expectativas, mas foram feitos muitos e significativos investimentos nestes processos pela indústria farmacêutica que inventa moléculas. 

No início da década de 1990, as técnicas cristalográficas de estudo das estruturas de proteínas por difração de raios-X evoluíram e a identificação da estrutura 3D da rodopsina (PDB 5WOP) pode ser considerado um marco, elucidando a natureza molecular dos receptores acoplados à proteína-G (GPCR´s), que tendo sua importância reconhecida pela Academia Nobel de Estocolmo, premiaram Brian Kobilka & Robert Lefkowitz, com o Prêmio Nobel de Química de 2012 pelas suas contribuições nesta área. Desta forma, as abordagens SBDD/LBDD avançaram e hoje conhece-se > 110 estruturas de GPCR´s descritas no Protein data Bank (PDB), responsáveis por ca. 50% dos biorreceptores dos fármacos contemporâneos, que produziram vendas de ca. US$ 180 bilhões, em 2018, e onde estão os receptores adrenérgicos, serotoninérgicos, dopaminérigicos, purinérgicos e adenosinérgicos, para citar somente alguns poucos.

A partir da virada do século, avanços tecnológicos permitiram a melhor capacitação instrumental, assim como a determinação de estruturas 3D de proteínas co-cristalizadas com diferentes ligantes. A descoberta da importância das quinases como possíveis alvos terapêuticos, favoreceu o reconhecimento da importância da flexibilidade molecular nas interações proteínas-ligantes & proteínas-proteínas, aliada às diversas estratégias novas de desenho de fármacos que se consolidam como aquela do uso de fragmentos moleculares (FBDD), virtual screening (VS), aprimorando o emprego do docking (ancoramento) molecular na triagem de coleções de compostos (quimiotecas, virtuais e/ou físicas). Estes temas serão tratados numa próxima postagem.

Aguardem!!

Cuidem-se! Salve a vacina!!!

        Obrigado por lerem.

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