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domingo, 19 de junho de 2022

A estereoquímica e a Química Medicinal (Parte 1)

            Ao participar do 16º Webinário do INCT-INOFAR, apresentado pela Professora Lídia M. Lima do LASSBio, ICB-UFRJ, recentemente e intitulado “Perspectivas do estudo do metabolismo em projetos de descoberta de fármacos” (YouTube), pude relembrar alguns aspectos bastante interessantes e ilustrativos de como a estereoquímica é importante, também, para o pleno conhecimento das propriedades moleculares dos compostos protótipos ou candidatos a novos fármacos, na definição e compreensão de comportamento nas fases farmacodinâmica (PD) e farmacocinética (PK). São estas considerações que decidi compartilhar com vocês aqui, desta vez.

           O estudo da estereoquímica parece ser um capítulo ansiogênico aos estudantes de Química Orgânica. Talvez pudéssemos “brincar” comparando os efeitos estéricos das moléculas estudadas, aos sobressaltos histéricos provocados nos estudantes. Não é um fenômeno novo, não! Saibam que “desde meu tempo” - e haja tempo nisso - os fatores estéricos eram “temidos” pelos estudantes e não fui exceção deste caso. Minha solução foi simples. Estudei mais, com muito mais atenção e fiz voluntariamente, todos exercícios do livro texto que era adotado pelo saudoso Professor Zalmin Lambert da Faculdade de Farmácia da UFRJ, lá pelos idos de 1970. Tratava-se do livro “Organic Chemistry” dos autores R. T. Morrison e M. Boyd, cuja primeira edição datava da época editado pela editora Alyn & Bacon e tinham várias cópias disponíveis na biblioteca   da Faculdade. Para mim tinha um contrapeso a mais, além da dificuldade natural da estereoquímica per-se..., o livro era TODO em inglês e eu era daqueles que precisava do dicionário para entender as difíceis palavras com mais de duas letras, assim como AND...!! Mas de verdade as dificuldades me fortaleceram e aprendi bastante naqueles tempos de graduação, graças à qualidade e dedicação dos saudosos mestres que tive, a quem devo todo meu aprendizado.

      

O fato é que consegui aprimorar, ao longo do tempo minha visão tridimensional, não sem muito esforço e trabalho. Ao compreender a sua importância, a estereoquímica das substâncias orgânicas que são a maioria absoluta dos fármacos passou a me fascinar e entendi a contribuição maravilhosa dos pioneiros como Louis Pasteur (1860), van´t Hoff e Le Bel (1874) entre muitos outros! 


     
     No webinário mencionado acima, recapitulei os estudos do metabolismo in vitro de LASSBio-448, um potente inibidor de fosfodiesterase-4 (PDE4), útil no controle de doenças respiratórias. Após inúmeros experimentos foram identificados por HPLC-EM três metabólitos: M1, M2 ou M3. A metabolização mostrou-se CYP450 dependente, produzindo a abertura do sistema benzodioxola ao catecol correspondente (M1) e a mono O-demetilação da unidade terminal benzodimetoxila (M2 ou M3), que não pode ser inequivocamente determinada dentre os dois regioisômeros possíveis.

     Cabe mencionar que não havíamos cogitado à época, a possibilidade de que o sistema CYP450 pudesse reagir com os “pontos lábeis” de LASSBio-448, indicados em vermelho na figura como soft spots, compreendendo metilenos ativados que são carbonos pró-quirais. Ambos são posições reativas, a por ser benzílica e b por ser ativada pela presença de heterátomo vizinho mais eletronegativo que o carbono. Houvessem sido oxidados produziriam espécies hidroxiladas em carbonos assimétricos logo, produziriam enantiômeros, que complicariam sobremaneira estes estudos, pela necessidade de se elucidarem suas configurações absolutas, tarefa bem mais complexa. A lição que ficou como experiência adquirida nestes estudos, é que devemos levar a termo, cuidadosamente, sempre, a presença de todos os pontos ou grupos funcionais vulneráveis ao metabolismo oxidativo, para anteciparmos as possibilidades efetivas do número e complexidade dos possíveis metabólitos que se formem.

Obrigado por lerem.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

A disciplina de Química Medicinal precisa de mais disciplina......

     Há algum tempo postei aqui as dificuldades de como se eleger temas atraentes e merecedores de serem tratados aqui e lidos por vocês. Pode parecer simples, mas de fato não é. Mesmo se considerarmos os tempos atuais, em que os especialistas dizem que com a profusão de revistas científicas novas, que surgem quase que diariamente em todas as áreas, de acesso livre e com apelos gráficos excelentes, temos cada vez menos tempo para leituras de cada vez mais, muito mais, material! Talvez o que nos esteja faltando seja o mais precioso dos bens contemporâneos: tempo!!  Para otimizá-lo necessitamos de muita disciplina e é isso que entendo está em falta na nossa disciplina: a Química Medicinal!

     Senão vejamos! Identifiquei em muitas leituras disciplinadamente feitas recentemente, o uso equivocado de termos estrangeiros modernos, completamente desapropriados às suas finalidades conceituais, e mesmo sem definições precisas, por autores por pura motivação marqueteira com a intensão de incluir um certo “read appeal” a publicações medíocres, de difícil leitura rotineira. Em português, constatamos o uso de temos equivocados em apresentações públicas e em publicações no vernáculo. Algumas vezes com significado dúbio pelo seu emprego por diferentes disciplinas. Neste caso considero o uso da palavra droga! Claro que em idiomas científicos consolidados referem-se usualmente as substâncias “do bem”, i.e. medicamentos (pharmaceuticals) e não às drogas ilícitas “do mal”, que infelizmente existem. Entretanto, o uso comum deu a esta palavra no nosso idioma uma conotação principal pera as últimas. Afinal neste particular as mídias estão mais ativas por retratarem nosso cotidiano urbano e o termo aparece em todo telejornal e em muitas outras mídias. Assim que, quando um(a) farmacologista o emprega ele(a) está se referindo àquelas “do bem”, certamente. Entretanto, entendo eu que não fica preciso quando não esteja se referindo a um determinado fármaco.

     Creio que o melhor a fazer é adotar sempre os termos de Química Medicinal que estejam no Glossário publicado pela IUPAC (D. R. Buckle, P. W. Erhardt, C. R. Ganellin, T. Kobayashi, T. J. Perun, J. Proudfoot, J. Senn-Bilfinger, Glossary of terms used in medicinal chemistry. Part II (IUPAC Recommendations 2013), Pure Appl. Chem., Vol. 85, No. 8, pp. 1725–1758, 2013; [Link]

     Neste caso, estarão respaldados pelas definições precisas construídas por especialistas experientes dos seus comitês científicos. Assim procedendo evitamos propagar “fake-scientific terms”, seja por ignorância, seja por ingenuidade e talvez ainda, por necessidades outras.  

     Um exemplo “clássico” dos erros mais comuns está no emprego do termo hit ao invés de ligante! O Glossário de Química Medicinal da IUPAC em sua segunda edição define:

71. hit - Molecule that produces reproducible activity above a defined threshold in a biological assay and whose structural identity has been established.

Note: This methodology permits the identification of additional hits and new scaffolds and develops structure–activity relationships around existing hits.

portanto não é correto se referir a um composto que se liga a um alvo virtualmente como um hit pois não há resultado de “binding” feito para sua validação e de fato apenas pode ser considerado um candidato a ligante do alvo em tela.

       A Figura a seguir ilustra o nível hierárquico que devemos adotar para nos referirmos corretamente a hit, ligante, protótipo e fármaco. O primeiro origina-se de um screening cego, inclusive virtual; o segundo já foi avaliado por bioensaios e confirmou a sua afinidade pelo alvo identificado no hit, em geral numa concentração inferior a 10 mM; o terceiro já passou por prova de conceito e teve sua estrutura química otimizada (PD/PK) e seus eventuais efeitos tóxicos drásticos precocemente avaliados (hERG), quando possível.

      Obrigado por lerem.