Nesta nossa Linha
do Tempo da Química Medicinal atingimos a oitava parte e vamos tratar do
surgimento das estatinas, inovação terapêutica que originou todos os fármacos
antilipêmicos, inibidores da enzima 3-hidroxi-3-metil-glutaril Co-A redutase (HMGCo-AR) com
indicação para o tratamento e prevenção de doenças cardiovasculares de elevados
índices de mortalidade.
Desde 1950 são conhecidos os riscos que taxas sanguíneas elevadas de colesterol têm para doenças cardiovasculares, sendo o controle plasmático da sua forma ligada às proteínas de baixa densidade (LDL-C), fundamental para preveni-las.
Desde 1950 são conhecidos os riscos que taxas sanguíneas elevadas de colesterol têm para doenças cardiovasculares, sendo o controle plasmático da sua forma ligada às proteínas de baixa densidade (LDL-C), fundamental para preveni-las.
A busca por
agentes terapeuticamente capazes de controlarem as taxas de colesterol
plasmático, tem estimulado intensa atividade de pesquisa nos laboratórios das
indústrias farmacêuticas que descobrem/inventam novos fármacos.
O
conhecimento de que a HMGCo-AR opera na biossíntese do colesterol produzindo o ácido
mevalônico, essencial à formação das unidades C-5 que levam ao esqualeno,
último precursor acíclico desta biossíntese isoprenóide, a credenciou como possível
alvo terapêutico de fármacos antilipêmicos.
A história
das estatinas se inicia, em 1976, no Japão quando o microbiologista Dr Akira
Endo, dos laboratórios Sankyo Co., buscando substâncias potencialmente
antibióticas, isola do fungo Penicillium
citrinum um derivado policetídeo (ML236B, Figura), que denominou
compactina. Este produto natural apresentava em sua estrutura, características
terpênicas com um esqueleto decalínico multi-substituído com quatro dos seus
sete centros estereogênicos. Embora com alguma propriedade antibiótica
identificada por Endo e seu grupo de pesquisas, este terpeno foi reconhecido
pela presença da função delta-lactona-beta-hidroxilada, como capaz de mimetizar
o intermediário envolvido na redução de HMGCo-A promovida pela HMGCo-AR em sua forma acíclica. Em 1979, ensaios in vivo em cães indicaram a redução do colesterol e a capacidade de
inibir a enzima desejada com valor de Ki = 1,4 nM, comportando-se como inibidor
competitivo de maior afinidade que o substrato natural. Estes promissores
resultados na busca de um novo fármaco antilipêmico, confirmaram o acerto de
Endo ao reconhecer a similaridade molecular entre a compactina e o substrato
enzimático da HMGCo-AR. A descoberta deste inibidor natural incentivou diversos
laboratórios de pesquisa a dedicarem esforços na busca de outras substâncias
ativas sobre a HMGCo-AR, sendo objeto de
amplos estudos nos laboratórios da Beecham Pharmaceuticals, em Londres e na
Merck Sharp Dohme (MSD), Rahway, New Jersey, EUA. Neste mesmo ano,
pesquisadores da MSD, isolaram de outra fonte natural (Aspergillus terreus) um terpeno denominado mevilonina,
posteriormente chamada lovastatina, como um alfa-homólogo em C-3 da compactina
original de Endo. A compactina e lovastatina foram os compostos-protótipos na
descoberta de outros HMGCo-AR inibidores (HMGCo-ARi). O derivado decalínico da
MSD apresentava uma desvantagem estrutural em relação ao composto original de
Endo. O sistema decaliníco da lovastatina possuía um centro estereogênico a
mais, exatamente referente ao grupamento metila em C-3. Estudos sobre a relação
entre a estrutura química e a atividade inibidora de HMGCo-AR nestes derivados decalínicos,
indicaram, inicialmente, que a introdução de um novo grupamento metila na
cadeia lateral em C-1, abolindo sua quiralidade e, portanto, favorecendo sua
síntese, mantinha a atividade do produto natural. A forma aberta da lactona da lovastatina
apresentava maior afinidade pelo alvo terapêutico (Ki = 0,6 nM), sendo mais
ativa que a forma lactônica e corroborando a hipótese de similaridade molecular
entre essas sub-unidades estruturais ao nível do sítio de reconhecimento da
HMGCo-AR, enquanto que, ao mesmo tempo, atribuía caráter farmacofórico para esta
sub-unidade estrutural oxigenada presente nestas substâncias. Estes resultados
orientaram, em 1982, a realização dos primeiros ensaios clínicos com uma estatina,
indicando significativa redução do LDL-C, com excelentes benefícios
terapêuticos para os pacientes estudados. Em 1987, a agência regulatória
norte-americana Food and Drug
Adminstration (FDA) aprova a simvastatina (Zocor®), análogo sintético da lovastatina, três vezes mais
potente, representando singela, mas astuta, simplificação molecular deste
produto natural, visto que o centro esterogênico presente na cadeia de C-1 foi
excluído. A simvastatina da MSD foi fruto de contínuos esforços de pesquisa da
equipe comandada por Arthur A. Patchett e ingressou no mercado como o primeiro
fármaco sintético atuando como inibidor de HMGCo-AR.
Nesta época o
principal metabólito ativo da compactina foi identificado nos laboratórios
Sankyo do Japão, como sendo o derivado onde a função delta-lactona-beta-hidroxilada
foi hidrolizada por esterases. Ensaios com este metabólito, o ácido-hidroxilado,
denominado pravastatina demonstraram sua potente atividade inibidora de
HMGCo-AR, sendo posteriormente lançada no mercado com as denominações de PravacholÒ e MevalotinaÒ, que foram
as primeiras estatinas com a função lactona aberta, i.e. apresentando a
sub-unidade farmacofórica ácido 3,5-diidroxieptanóico.
Estudos
de metabolismo subseqüentes, realizados com a compactina, indicaram que a
posição C-3 do sistema decalínico era hidroxilada por ação das enzimas
oxidativas hepáticas. O álcool secundário bioformado apresentava uma natureza
alílica, com átomos de hidrogênio favorecendo sua desidratação por eliminação
do tipo anti de uma molécula de água.
O trieno formado aromatizava-se perdendo o grupo éster de C-1, aliás um bom
grupo abandonador. Resultados similares foram obtidos nos estudos de
estabilidade química da pravastatina em meados de 1980, indicando que os
derivados aromáticos obtidos apresentavam atividade inibitória sobre a
HMGCo-AR. Estas observações experimentais sugeriam que a sub-unidade decalínica central teria caráter hidrofóbico
no reconhecimento pela HMGCo-AR, podendo, portanto, ser estruturalmente
modificada por sistemas aquirais aromáticos. Esta racionalização orientou a
síntese de inúmeros derivados com o anel central aromático, representando, na
linguagem da Química Medicinal, eficiente
etapa de simplificação molecular do protótipo natural.
A partir daí
uma extensa série de análogos aromáticos foram descritos, sobretudo na
literatura de patentes, contendo, diversos sistemas aromáticos, exemplificados
por anéis imidazólicos, indolizínicos, pirazólicos, quinolínicos, pirrólicos,
furânicos, tiofênicos, naftalênicos e indênicos, além de indólicos. Dentre muitos
compostos ativos, o derivado indólico (XU 62-320), sintetizado em 1994 resultou
na fluvastatina, primeira estatina a ingressar no mercado sem apresentar em sua
estrutura o sistema decalínico quiral, presente na compactina original. Esta
nova estatina possui como característica estrutural adicional, uma sub-unidade
ácido heptanóico diidroxilado como substituinte do sistema indólico. Ademais,
deve-se ressaltar a maior simplicidade estrutural deste fármaco, que não possui
nenhum centro estereogênico no sistema lipofílico central, em contraste com os
protótipos naturais que apresentam cinco centros quirais no anel decalínico
original.
Em
1991, foi lançado no mercado pela Pfizer outro me-too desta classe de
agentes anti-lipêmicos, representado pela atorvastatina. Esta substância
originada na empresa farmacêutica Parke-Davis, em trabalhos de Bruce Roth,
possui o mesmo padrão estrutural das estatinas aromáticas, sendo o isóstero
pirrólico e apresentando a mesma sub-unidade para-fluorfenila
substituindo o anel heterocíclico central. A característica estrutural mais
significativa da atorvastatina em relação à fluvastatina, reside em diferenças
na natureza da cadeia ácida terminal que neste fármaco é saturada. A
atorvastatina (LipitorÒ) foi o mais valioso me-too
conhecido, tendo líder em vendas mundiais durante quase uma década, sendo o
primeiro fármaco blockbuster capaz de
superar a marca dos US$ 13 bilhões em vendas mundiais (2007), totalizando ca. US$ 100 bilhões em vendas durante
período de vigência de sua patente, que expirou no principal mercado mundial
(EUA) em 2011. O atraente mercado que representam as estatinas justifica o
lançamento de mais um fármaco concorrente: a rosuvastatina (2003, CrestorÒ) pela Astra-Zeneca, que atingiu a marca dos US$ 7
bilhões em vendas mundiais em 2011, anunciando-se como nova estatina substituta
da atorvastatina. Esta estatina apresenta o mesmo padrão estrutural
não-decalínico, possuindo o anel central pirimidínico e a presença de uma
função N-metil-metilsulfonilamina substituindo-o. Em 2009, surge a
pitavastatina, derivado quinolínico de mesmas características estruturais
gerais com Ki = 3,4 nM pela HMGCo-AR. As estatinas mais recentes apresentam
como vantagens significativas sobre a atorvastatina uma maior
biodisponibilidade oral (40% e 60%, respectivamente; atorvastatina = 12%) demandando
menor dosagem posológica.
A atorvastatina teve a vigência de sua patente vencida
em novembro de 2011 tornando-se um fármaco genérico. Especialistas afirmam que
será, provavelmente, o genérico de maior faturamento nos próximos anos. Uma
nova síntese total foi realizada pelo Professor Luis Carlos Dias e o Dr Adriano
S. Vieira no Instituto de Química da UNICAMP no âmbito do Instituto Nacional de
Çiência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-INOFAR) [http://www.inct-inofar.ccs.ufrj.br] representando importante patrimônio
intelectual para transferência de tecnologia ao setor produtivo industrial.
A classe das estatinas representa aquela de maior
faturamento em vendas mundiais por ano da história dos medicamentos, tendo se
originado de produto natural de fungo, como a penicilina e fruto da
perspicácia, tenacidade e numerosas pesquisas científicas contínuas e
sistemáticas, envolvendo equipes interdisciplinares, industriais e acadêmicas,
que colocaram a disposição das populações recursos terapêuticos inovadores no
controle dos riscos de doenças cardiovasculares de elevado impacto
epidemiológico.
Na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal, trataremos do surgimento dos anti-virais que a partir do aciclovir, descoberto por Gertrude B. Elion, pavimentou a via de chegada aos fármacos anti-HIV.
Obrigado
por ler.