Há algum tempo adotei o distanciamento social, radical, como estratégia de proteção pessoal contra o novo Coronavírus, incluindo o distanciamento digital neste blog! Entretanto, desde a última postagem, sobre minha expectativa no reposicionamento do remdesevir como sendo uma molécula útil para minimizar o agravamento do estado de pacientes internados pela Covid-19, acumulei muita leitura, não mais sobre a SARS-CoV-2, como sobre vários aspectos relativos à Química Medicinal, propriamente dita. Desta feita, vou compartilhar algumas conclusões que fiz nestas diversas leituras neste período de recesso digital!
Muita coisa mudou desde que o início de minha carreira docente na
UFRJ, em 1984, que interferiram com a evolução da Química Medicinal, principalmente
quanto à tecnologia e automação e em especial na computação. Nos primeiros
tempos da Química Medicinal, alguns termos ainda eram timidamente usados,
como otimização do composto-protótipo, que teve seu uso impulsionado pelo
estudo da relação entre a estrutura química e a atividade (SAR), ainda que de
certa forma empírica e empregando bioensaios in vivo para avaliar a
atividade farmacológica desejada das substâncias em estudo. Há época, muito
pouca atenção, ou quase nenhuma, era dada à relação entre a estrutura química e
as propriedades (SPR), o que só veio a acontecer de forma mais rotineira pela
compreensão da importância dos fatores farmacocinéticos na escolha (go-no go)
de um novo composto-protótipo, para que pudesse ser considerado como
verdadeiramente promissor. Talvez uma década se passou para que uma mudança
houvesse reduzido o uso do rato Wistar em bioensaios e favorecido a predominância
gradual dos ensaios in vitro nas abordagens de otimização dos
compostos-protótipos. Esta mudança, em minha visão, foi promovida pelo melhor e
maior conhecimento molecular dos alvos terapêuticos, inclusive a nível 3D.
Muito desta nova postura dos Químicos Medicinais de então, se deveu às novas
técnicas desenvolvidas pelo emprego do computador - que de certa forma observou
à mesma época, uma popularização, especialmente aqueles de uso pessoal. Assim
também se popularizou o termo “computer-assisted drug design (CADD)” que,
por sua vez, foi impulsionado por significativos avanços da biologia
estrutural, notadamente na cristalografia de proteínas e na modelagem por
computador. Nesta conjuntura surgem, à mesma época, termos que se popularizaram
entre os Químicos Medicinais, como as expressões “structure-based
drug design (SBDD)” e “ligand-based drug design (LBDD)”, sendo que
nos laboratórios da indústria farmacêutica que inventa fármacos, todos esses
esforços iniciais para o desenho de moléculas candidatas a fármacos, empregando
técnicas computacionais observaram um certo sucesso, embora talvez menor do que
esperavam.
Os avanços tecnológicos em robótica e a triagem de alto
rendimento, resultantes, em grande parte, dos esforços de miniaturização e das técnicas
biológicas capazes de testar milhares de compostos simultaneamente, em curto
tempo, criaram novas e otimistas expectativas, que também falharam na taxa de
sucesso prevista, muito devido à pouca diversidade química, insuficiente nas enormes
bibliotecas de compostos que estavam sendo sintetizadas, selecionadas e
utilizadas. A combinação de ferramentas de triagem de alto rendimento e técnicas
de SBDD/LBDD possibilitaram novas técnicas para abordagens
empíricas e orientadas ao desenho de novos padrões moleculares. Aliás, entendo
que do emprego rotineiro destas denominações SBDD/LBDD, originaram-se as
expressões “pequenas-moléculas” (small molecules) para os hits e
ligantes identificados, que motivaram, por sua vez, o surgimento dos termos “scaffold”,
“motif”, privilegiados (“privilleged”) ou não, em contraste com
as “grande moléculas” (os biorreceptores).
O crescimento da Farmacologia, inclusive Molecular e as contínuas
melhorias tecnológicas nesta disciplina, irmã da Química Medicinal e
também central no complexo processo da descoberta
de novos fármacos inovadores, levaram a uma nova postura nos estudos capazes de
antecipar níveis de segurança no eventual futuro uso dos compostos-protótipos
identificados que passaram a ser precocemente investigados neste sentido. Surgem
neste período os termos “off-target” e os ensaios em painéis de alvos de
maior “druggability” versus outros “alvos de alerta”, indicando possível
risco de efeitos tóxicos. Ferramentas assessórias, como a popularização do uso
do caderno de laboratório (notebook) eletrônico e emprego de técnicas de
purificação e determinação de pureza instrumentalizadas, aumentaram a
eficiência e a temporança para os químicos medicinais. Avanços tecnológicos adicionais
em quimiometria permitiram o manuseio e a visualização rápida de grandes
conjuntos de dados e a triagem mais ágil de uma maior diversidade dos espaços
químicos utilizados. Entretanto, estas abordagens mais recentes ainda não
resultaram em resultados de impacto significativo, embora tenham encontrado
lugar no arsenal de ferramentas que permitem aos “caçadores de novos fármacos”,
descobrirem novos reais candidatos a estudos clínicos.
Os Químicos Medicinais de hoje sabem quando e como
aproveitar essas ferramentas para lidar com alvos de complexidade molecular crescente,
incluindo aspectos conformacionais de difícil previsão, entre aqueles fatores
mais relevantes para o reconhecimento molecular de ligantes eficazes.
Os especialistas projetam para o perfil dos medicamentos que serão utilizados
nas próximas décadas do século 21, a coexistência no arsenal terapêutico das pequenas
moléculas e dos biofármacos e antecipam que o potencial de benefícios na
aplicação do aprendizado de máquina (“machine learning”) já está no
horizonte e será muito útil para acelerar a descoberta de novos medicamentos.
Novas tecnologias de produção (3DP) também nos aproximam do uso personalizado
de medicamentos, em futuro próximo.
Em minha perspectiva, inventar
moléculas de uso terapêutico, principal missão dos Químicos Medicinais, será,
como já é, uma atividade científica desenvolvida por pessoas e jamais será
substituída pela inteligência artificial e suas múltiplas ferramentas, nem que venham
a ser desenvolvidos (sic!) algoritmos capazes de “traduzirem” a intuição dos autênticos
Químicos Medicinais. O discernimento, criatividade e julgamento do Químico Medicinal
qualificado, continuarão a ser qualidades marcantes e essenciais para o sucesso
na identificação de novas “pequenas moléculas” de interesse terapêutico, que ao
contrário do adjetivo oriundo do Norte do hemisfério, continuarão a ser as
“grandes” moléculas que mudaram, mudam e mudarão o mundo. Sempre!
Obrigado por lerem!!
Cuidem-se!
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