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domingo, 18 de outubro de 2020

Sobre a intuição dos Químicos Medicinais na missão de inventar fármacos

 Há algum tempo adotei o distanciamento social, radical, como estratégia de proteção pessoal contra o novo Coronavírus, incluindo o distanciamento digital neste blog! Entretanto, desde a última postagem, sobre minha expectativa no reposicionamento do remdesevir como sendo uma molécula útil para minimizar o agravamento do estado de pacientes internados pela Covid-19, acumulei muita leitura, não mais sobre a SARS-CoV-2, como sobre vários aspectos relativos à Química Medicinal, propriamente dita. Desta feita, vou compartilhar algumas conclusões que fiz nestas diversas leituras neste período de recesso digital!

Muita coisa mudou desde que o início de minha carreira docente na UFRJ, em 1984, que interferiram com a evolução da Química Medicinal, principalmente quanto à tecnologia e automação e em especial na computação. Nos primeiros tempos da Química Medicinal, alguns termos ainda eram timidamente usados, como otimização do composto-protótipo, que teve seu uso impulsionado pelo estudo da relação entre a estrutura química e a atividade (SAR), ainda que de certa forma empírica e empregando bioensaios in vivo para avaliar a atividade farmacológica desejada das substâncias em estudo. Há época, muito pouca atenção, ou quase nenhuma, era dada à relação entre a estrutura química e as propriedades (SPR), o que só veio a acontecer de forma mais rotineira pela compreensão da importância dos fatores farmacocinéticos na escolha (go-no go) de um novo composto-protótipo, para que pudesse ser considerado como verdadeiramente promissor. Talvez uma década se passou para que uma mudança houvesse reduzido o uso do rato Wistar em bioensaios e favorecido a predominância gradual dos ensaios in vitro nas abordagens de otimização dos compostos-protótipos. Esta mudança, em minha visão, foi promovida pelo melhor e maior conhecimento molecular dos alvos terapêuticos, inclusive a nível 3D. Muito desta nova postura dos Químicos Medicinais de então, se deveu às novas técnicas desenvolvidas pelo emprego do computador - que de certa forma observou à mesma época, uma popularização, especialmente aqueles de uso pessoal. Assim também se popularizou o termo “computer-assisted drug design (CADD)” que, por sua vez, foi impulsionado por significativos avanços da biologia estrutural, notadamente na cristalografia de proteínas e na modelagem por computador. Nesta conjuntura surgem, à mesma época, termos que se popularizaram entre os Químicos Medicinais, como as expressões “structure-based drug design (SBDD)” e “ligand-based drug design (LBDD)”, sendo que nos laboratórios da indústria farmacêutica que inventa fármacos, todos esses esforços iniciais para o desenho de moléculas candidatas a fármacos, empregando técnicas computacionais observaram um certo sucesso, embora talvez menor do que esperavam.

Os avanços tecnológicos em robótica e a triagem de alto rendimento, resultantes, em grande parte, dos esforços de miniaturização e das técnicas biológicas capazes de testar milhares de compostos simultaneamente, em curto tempo, criaram novas e otimistas expectativas, que também falharam na taxa de sucesso prevista, muito devido à pouca diversidade química, insuficiente nas enormes bibliotecas de compostos que estavam sendo sintetizadas, selecionadas e utilizadas. A combinação de ferramentas de triagem de alto rendimento e técnicas de SBDD/LBDD possibilitaram novas técnicas para abordagens empíricas e orientadas ao desenho de novos padrões moleculares. Aliás, entendo que do emprego rotineiro destas denominações SBDD/LBDD, originaram-se as expressões “pequenas-moléculas” (small molecules) para os hits e ligantes identificados, que motivaram, por sua vez, o surgimento dos termos “scaffold”, “motif”, privilegiados (“privilleged”) ou não, em contraste com as “grande moléculas” (os biorreceptores).  

O crescimento da Farmacologia, inclusive Molecular e as contínuas melhorias tecnológicas nesta disciplina, irmã da Química Medicinal e também central no  complexo processo da descoberta de novos fármacos inovadores, levaram a uma nova postura nos estudos capazes de antecipar níveis de segurança no eventual futuro uso dos compostos-protótipos identificados que passaram a ser precocemente investigados neste sentido. Surgem neste período os termos “off-target” e os ensaios em painéis de alvos de maior “druggability” versus outros “alvos de alerta”, indicando possível risco de efeitos tóxicos. Ferramentas assessórias, como a popularização do uso do caderno de laboratório (notebook) eletrônico e emprego de técnicas de purificação e determinação de pureza instrumentalizadas, aumentaram a eficiência e a temporança para os químicos medicinais. Avanços tecnológicos adicionais em quimiometria permitiram o manuseio e a visualização rápida de grandes conjuntos de dados e a triagem mais ágil de uma maior diversidade dos espaços químicos utilizados. Entretanto, estas abordagens mais recentes ainda não resultaram em resultados de impacto significativo, embora tenham encontrado lugar no arsenal de ferramentas que permitem aos “caçadores de novos fármacos”, descobrirem novos reais candidatos a estudos clínicos.

Os Químicos Medicinais de hoje sabem quando e como aproveitar essas ferramentas para lidar com alvos de complexidade molecular crescente, incluindo aspectos conformacionais de difícil previsão, entre aqueles fatores mais relevantes para o reconhecimento molecular de ligantes eficazes.


Os especialistas projetam para o perfil dos medicamentos que serão utilizados nas próximas décadas do século 21, a coexistência no arsenal terapêutico das pequenas moléculas e dos biofármacos e antecipam que o potencial de benefícios na aplicação do aprendizado de máquina (“machine learning”) já está no horizonte e será muito útil ​​para acelerar a descoberta de novos medicamentos. Novas tecnologias de produção (3DP) também nos aproximam do uso personalizado de medicamentos, em futuro próximo.

Em minha perspectiva, inventar moléculas de uso terapêutico, principal missão dos Químicos Medicinais, será, como já é, uma atividade científica desenvolvida por pessoas e jamais será substituída pela inteligência artificial e suas múltiplas ferramentas, nem que venham a ser desenvolvidos (sic!) algoritmos capazes de “traduzirem” a intuição dos autênticos Químicos Medicinais. O discernimento, criatividade e julgamento do Químico Medicinal qualificado, continuarão a ser qualidades marcantes e essenciais para o sucesso na identificação de novas “pequenas moléculas” de interesse terapêutico, que ao contrário do adjetivo oriundo do Norte do hemisfério, continuarão a ser as “grandes” moléculas que mudaram, mudam e mudarão o mundo. Sempre!

Obrigado por lerem!!

Cuidem-se!

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