Pesquisar este blog

domingo, 8 de março de 2020

Os produtos naturais e a Química Medicinal

     Os produtos naturais possuem uma enorme diversidade estrutural e química que não pode ser comparada a nenhuma biblioteca sintética de pequenas moléculas e continuam a inspirar novas descobertas na Química Medicinal.
     A história da medicina está repleta de notáveis passagens que ilustram como a descoberta de um produto natural impactou profundamente os avanços da terapêutica e inspirou a descoberta de novos medicamentos, originais molecularmente e inovadores terapeuticamente, atuando por novos mecanismos farmacológicos de ação (MoA).
      Vários exemplos, poderiam ilustrar estas afirmativas, especialmente entre os medicamentos anticâncer, como o placlitaxel e a camptotecina, ambos descritos por Wall e Wani, pesquisadores do NCI-EUA. Vários Nobelistas receberam o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina e de Química, por suas excelentes contribuições científicas baseadas no estudo de produtos naturais. Podemos citar, Sir Alexander Fleming, Ernst B. Chain e Sir Howard Florey, premiados em 1945, pela descoberta da penicilina.
       A década de 50 do século passado, foi considerada por muitos autores como a Era de Ouro da descoberta de medicamentos de origem natural. Muito mais recentemente, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina foi concedido, em 2015, a William C Campbell, Satoshi Omura e Tu Youyou, três pesquisadores envolvidos no estudo de duas substâncias de origem natural como a avermectina e a artemisinina, que se tornaram importantes medicamentos para o controle de helmintoses e da malária, respectivamente.
 
     Neste post vou tratar de medicamentos analgésicos que se originaram de produtos naturais. Obviamente, um dos mais historicamente importantes produtos naturais, sob a ótica da Química Medicinal, não poderia ser outro além da morfina. Principal alcaloide do ópio, descrito em obras bizantinas, a morfina inspirou a descoberta de outros alcaloides estruturalmente relacionados, variando apenas na localização de grupos metilas em suas hidroxilas (e.g. codeína e tebaína). Se desde 1522, Paracelsus já mencionava as propriedades analgésicas do “elixir do ópio”, a morfina, foi isolada de Papaver somniferum, somente em 1804, por um farmacêutico alemão, Friedrich Setürner, que observando sua propriedade de provocar o sono a denominou morfina, homenageando Morfeu, o deus grego do sono. Em 1917, Setürner a comercializa como analgésico, através de sua companhia. Em 1927, é comercializada pela farmácia alemã que veio a ser a indústria farmacêutica Merck.
     A estrutura química da morfina só foi elucidada em 1925, por Sir Robert Robinson, juntamente com a codeína e a tebaína, mono- e bis-homólogos da morfina. Em 1952, Marshall Gates da Universidade de Rochester, descreveu a primeira síntese da morfina, 27 anos após sua estrutura ter sido descrita.
     Devido seus efeitos centrais promotores de dependência química, foi proscrita pela OMS sendo recomendado seu uso apenas em determinados casos de dores intensas. A identificação das propriedades alucinógenas do seu derivado diacetilado (heroína) reforçou o controle em seu uso. Inúmeras modificações estruturais foram introduzidas na molécula da morfina e em razão da presença de um álcool alilíco em sua estrutura, vários derivados rearranjados por tratamento ácido apresentavam estruturas mais simples. Destes estudos de degradação química identificou-se derivados 4-fenilpiperidinícos que preservavam as propriedades analgésicas centrais e vieram a produzir, em 1939, a meperidina (DemerolR) primeiro analgésico sintético inspirado na morfina.
     No campo dos analgésicos naturais encontra-se a epibatidina, alcaloide isolado em 1970, por John W Daly, NIH-EUA, da secreção de defesa de sapos equatorianos da espécie Epipedobates tricolor.  Esta substância de pequeníssima abundância natural possui em sua estrutura características peculiares que muito dificultaram a elucidação de sua estrutura química. A saber, a presença de um fragmento molecular 6-cloropirídinico, até então nunca identificado num produto natural. Ademais, a natureza 1-aza-biciclo[3.2.2.]heptano do sistema biciclíco conectado à unidade aromática clorada, também contribuiu bastante para dificultar os trabalhos de Daly e colaboradores na elucidação estrutural da epibatidina. Uma vez identificada, evidenciou-se a similaridade molecular que tinha com a nicotina, indicando que possivelmente poderia ser um ligante de receptores nicotínicos da acetil-colina (n-AChR). Desta forma, Daly e colaboradores da Abbott foram capazes de descobrirem as potentes propriedades analgésicas desta substância que se mostrou 100 vezes mais potente do que a morfina. Inúmeros esforços de pesquisa, realizados pela Abbott, levaram a identificação da tebaniclina (ABT-594) poderosa substância analgésica inspirada na epibatidina que preserva a unidade 6-cloropiridina, agora apresentando uma unidade espaçadora de 2 átomos (O e C) antes do anel azetidínico, homologo inferior da pirrolidina presente na nicotina. Esta substância preservou as potentes propriedades analgésicas do produto natural original, mas apresentou severos efeitos gastroirritantes em estudos de fase 2 para uso como analgésico em quadros de dor neuropática. A partir destes estudos, iniciou-se na Abbott (EUA), uma linha de pesquisas visando a identificação de novos agentes analgésicos para tratamento da dor neuropática, em curso até hoje.
     Pelo que procurei demonstrar, os PN’s foram e ainda são importantes fontes de inspiração molecular para os Químicos Medicinais, na busca por novos medicamentos inovadores.
Obrigado por lerem.