A história da medicina está repleta de notáveis passagens que ilustram como a descoberta de um produto natural impactou profundamente os avanços da terapêutica e inspirou a descoberta de novos medicamentos, originais molecularmente e inovadores terapeuticamente, atuando por novos mecanismos farmacológicos de ação (MoA).
Vários exemplos, poderiam ilustrar estas afirmativas, especialmente entre os medicamentos anticâncer, como o placlitaxel e a camptotecina, ambos descritos por Wall e Wani, pesquisadores do NCI-EUA. Vários Nobelistas receberam o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina e de Química, por suas excelentes contribuições científicas baseadas no estudo de produtos naturais. Podemos citar, Sir Alexander Fleming, Ernst B. Chain e Sir Howard Florey, premiados em 1945, pela descoberta da penicilina.
A década de 50 do século passado, foi considerada por muitos autores como a Era de Ouro da descoberta de medicamentos de origem natural. Muito mais recentemente, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina foi concedido, em 2015, a William C Campbell, Satoshi Omura e Tu Youyou, três pesquisadores envolvidos no estudo de duas substâncias de origem natural como a avermectina e a artemisinina, que se tornaram importantes medicamentos para o controle de helmintoses e da malária, respectivamente.
Neste post vou tratar de medicamentos
analgésicos que se originaram de produtos naturais. Obviamente, um dos mais historicamente
importantes produtos naturais, sob a ótica da Química Medicinal, não poderia
ser outro além da morfina. Principal alcaloide do ópio, descrito em obras
bizantinas, a morfina inspirou a descoberta de outros alcaloides estruturalmente
relacionados, variando apenas na localização de grupos metilas em suas
hidroxilas (e.g. codeína e tebaína). Se desde 1522, Paracelsus já
mencionava as propriedades analgésicas do “elixir do ópio”, a morfina, foi
isolada de Papaver somniferum, somente em 1804, por um farmacêutico
alemão, Friedrich Setürner, que observando sua propriedade de provocar o sono a
denominou morfina, homenageando Morfeu, o deus grego do sono. Em 1917, Setürner
a comercializa como analgésico, através de sua companhia. Em 1927, é comercializada
pela farmácia alemã que veio a ser a indústria farmacêutica Merck.
A estrutura química da morfina só foi elucidada
em 1925, por Sir Robert Robinson, juntamente com a codeína e a tebaína, mono- e
bis-homólogos da morfina. Em 1952, Marshall Gates da Universidade de Rochester,
descreveu a primeira síntese da morfina, 27 anos após sua estrutura ter sido
descrita.
Devido seus efeitos
centrais promotores de dependência química, foi proscrita pela OMS sendo
recomendado seu uso apenas em determinados casos de dores intensas. A
identificação das propriedades alucinógenas do seu derivado diacetilado
(heroína) reforçou o controle em seu uso. Inúmeras modificações estruturais
foram introduzidas na molécula da morfina e em razão da presença de um álcool
alilíco em sua estrutura, vários derivados rearranjados por tratamento ácido apresentavam
estruturas mais simples. Destes estudos de degradação química identificou-se derivados
4-fenilpiperidinícos que preservavam as propriedades analgésicas centrais e
vieram a produzir, em 1939, a meperidina (DemerolR) primeiro
analgésico sintético inspirado na morfina.
No campo dos analgésicos naturais encontra-se a
epibatidina, alcaloide isolado em 1970, por John W Daly, NIH-EUA, da secreção
de defesa de sapos equatorianos da espécie Epipedobates tricolor. Esta substância de pequeníssima abundância
natural possui em sua estrutura características peculiares que muito
dificultaram a elucidação de sua estrutura química. A saber, a presença de um
fragmento molecular 6-cloropirídinico, até então nunca identificado num produto
natural. Ademais, a natureza 1-aza-biciclo[3.2.2.]heptano do sistema biciclíco
conectado à unidade aromática clorada, também contribuiu bastante para
dificultar os trabalhos de Daly e colaboradores na elucidação estrutural da
epibatidina. Uma vez identificada, evidenciou-se a similaridade molecular que
tinha com a nicotina, indicando que possivelmente poderia ser um ligante de
receptores nicotínicos da acetil-colina (n-AChR). Desta forma, Daly e
colaboradores da Abbott foram capazes de descobrirem as potentes propriedades
analgésicas desta substância que se mostrou 100 vezes mais potente do que a
morfina. Inúmeros esforços de pesquisa, realizados pela Abbott, levaram a
identificação da tebaniclina (ABT-594) poderosa substância analgésica inspirada
na epibatidina que preserva a unidade 6-cloropiridina, agora apresentando uma
unidade espaçadora de 2 átomos (O e C) antes do anel azetidínico, homologo inferior
da pirrolidina presente na nicotina. Esta substância preservou as potentes
propriedades analgésicas do produto natural original, mas apresentou severos
efeitos gastroirritantes em estudos de fase 2 para uso como analgésico em quadros
de dor neuropática. A partir destes estudos, iniciou-se na Abbott (EUA), uma
linha de pesquisas visando a identificação de novos agentes analgésicos para
tratamento da dor neuropática, em curso até hoje.
Pelo que procurei demonstrar,
os PN’s foram e ainda são importantes fontes de inspiração molecular para os
Químicos Medicinais, na busca por novos medicamentos inovadores.
Obrigado por lerem.