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sexta-feira, 29 de março de 2019

Serendipidade e a descoberta de fármacos: penicilina.

     Não fui capaz de me assegurar se este termo consta do Aurélio, pois a versão “soft” que tenho não é recente. O encontrei no dicionário Houaiss, on-line, acessível para assinantes no site Uol, com o significado: “aptidão, faculdade ou dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de descobri-las por acaso”. Esta definição me levou a resumi-la como algo do tipo: “acidente feliz!”
Interessante que ao confirmar sua inclusão no vernáculo, pude constatar que muitas definições possíveis da Web, vincula-o às descobertas científicas. Portanto, cabe associá-lo ao processo de descoberta de fármacos, ou “drug discovery”.
Inúmeros autores já se debruçaram sobre este tema. Várias são suas listas, quanto aos fármacos frutos destes “acidentes felizes” e alguns estão presentes em muitas daquelas listas. Decidi que seria melhor focar num destes fármacos, tendo como possível critério de escolha, a presença unânime, se possível, ou uma presença majoritária e significativa em muitas delas. Daí emergiu a penicilina, cuja descoberta data de 1928, feita por Alexander Fleming, um médico escocês que trabalhava como microbiologista na Inglaterra, no início do século passado.
É fato que a descoberta da penicilina pode ser considerada, com justiça, como um feito científico diferenciado do século 20! Entendo que a penicilina mereça ser classificada como uma das “Moléculas da Vida”, pois foi a mãe dos antibióticos que deram “vida” a declaração de Pasteur: “La vie empeche la vie!”  Esta frase de Pasteur referia-se às propriedades que alguns organismos possuíam, através seus mecanismos químicos de defesa, que tornava-os capazes de matar predadores. De fato, esta frase de Pasteur, retomada no contexto de Fleming, traduz a base da antibioticoterapia! Substâncias oriundas de um organismo, que apresentam letalidade a outros.
Foi desta forma que Fleming iniciou a descoberta fortuita da penicilina, em seus laboratórios do Departamento de Inoculação do Hospital St Mary´s, em King Cross, Londres, numa tarde de setembro, tipicamente nublada do fim do verão londrino, de 1925. Diz a história que ele observou, ao regressar de férias ao laboratório, uma placa de Petri contaminada com inesperado halo de inibição, prevenindo o crescimento uniforme de uma cepa de estafilococos, lá dispersada. A proximidade desta placa à uma janela mal fechada, aos fundos do laboratório do andar em que ficava o seu, de microbiologia, parecia indicar uma contaminação fúngica, provavelmente vinda do andar inferior, onde havia um de produção de vacinas para alergias, utilizando fungos. A partir desta observação, a serendipidade aguçada de Fleming propiciou a identificação posterior do fungo contaminante (Penicillium notarum), e do efeito do componente químico produzido, responsável pela inibição do crescimento da cepa bacteriana de estafilocos na placa. Sua primeira publicação sobre o papel das propriedades antibióticas do fungo Penicillium spp. data de dezembro de 1928 e teve o título “Cultures of a Penicillium”.
Alguns anos se passaram até que um pesquisador australiano se associou à Cátedra de Patologia da Universidade de Oxford, Howard Florey, em 1932, e se interessou pela penicilina descrita por Fleming. Em seguida, em 1938, Ernst D. Chain, um químico da mesma Universidade de Oxford, se debruçou no estudo da instabilidade química da penicilina. Os trabalhos destes grupos resultaram numa publicação, em 1949 e tiveram suporte financeiro posterior, da Fundação Rockefeller, de Nova Iorque, EUA, que propiciou o isolamento e produção fermentativa da penicilina, ainda em pequena escala. Outros pesquisadores se associaram, posteriormente, à equipe de Chain & Florey, como Edward Abraham, que foi responsável pelos estudos de estabilidade química da penicilina, constatando que não resistia a acidez do trato gastrointestinal.  
Alguns autores associam a penicilina aos estudos sobre o uso da via injetável para a administração de fármacos. Não fosse devido à sua labilidade química, prevenindo seu uso por via oral, provavelmente não se teria aprendido, tão cedo, sobre a utilização das vias injetáveis para a administração de medicamentos. Também pode-se associar à penicilina, uma das primeiras iniciativas exitosas de se aproximar o setor acadêmico, onde iniciou-se a história da penicilina, à indústria. Esforços de Chain, junto às empresas inglesas da época como Burroughs Welcome, Boots Co., Imperial Chemical Industries (ICI), para a produção em escala da penicilina, não lograram sucesso. Por outro lado, Florey fez o mesmo tipo de esforços junto a empresas americanas, como Merck Co., E. R. Squibb & Sons, Charles Pfizer Co. e Lederle Laboratories. Após alguns recuos, Merck, Squibb e Pfizer concordaram em associarem-se num esforço conjunto para produzirem penicilina. Algum pouco tempo depois, as empresas Abbott, Eli Lilly, Parke, Davis Co., Upjohn Co. e Wyeth juntaram-se para, em novembro de 1942, nos laboratórios desta última, produzirem a primeira batelada de penicilina. Concomitantemente a estes esforços de desenvolvimento da penicilina, nos laboratórios Dyson Perrin da Universidade de Oxford, Sir Robert Robinson e colaboradores, estudavam métodos de síntese da penicilina, objetivando elucidar sua estrutura química. Em fins de 1943, pesquisadores de Oxford e da Merck concluíam que a penicilina teria uma das duas possíveis estruturas (1) ou (2):
A primeira (1) com um sistema benzil-oxazolona ligado ao anel tiazolidínico, enquanto que a estrutura alternativa (2) teria um raríssimo anel de quatro membros b-lactâmico, fundido ao mesmo anel dieterocíclico. Um esforço inter-laboratorial foi iniciado, visando obterem-se sinteticamente, ambos compostos, para comprovação da sua estrutura química. A despeito destes esforços, envolvendo inúmeros laboratórios em ambos lados do Atlântico, nenhum resultado conclusivo emergiu.
 
 
A partir de 1948, a penicilina passou a ser prescrita contra várias infecções até então letais, merecendo, portanto, a classificação de molécula salva-vidas, surgida pela observação perspicaz de Sir Fleming. Não somente por justiça e reconhecimento, mas por mérito científico A. Fleming, H. Florey e E. B. Chain foram agraciados com o Nobel de Fisiologia e Medicina em 1945, assim como D. C. Hodgkin que, em 1964, ganhou o Prêmio Nobel de Química, tendo sido a primeira inglesa premiada.
Muitos outros fármacos de grande importância terapêutica surgiram, fruto de “acidentes felizes”, ou serendipidade, merecendo citação a clorpromazina (3), clordiazepóxido (4), imipramina (5), simvastatina (6) e sildenafila (7), para nomear apenas alguns, distribuídos cronologicamente. Especialistas e estudiosos do tema afirmam que ca. 24% dos fármacos disponíveis no arsenal terapêutico contemporâneo originaram-se do processo de serendipidade, diretamente, como vários “first-in-class” e outros membros seguintes da classe terapêutica (me-too). Por exemplo, após a simvastatina (6), primeiro fármaco da classe das estatinas, vários me-too apareceram posteriormente, destacando-se a atorvastatina (8), considerada a segunda geração da classe destes anti-lipêmicos inibidores da enzima hidróximetilglutaril-CoA-redutase (HMGCoA-R), fármaco recordista em vendas na história dos medicamentos, rendendo à Pfizer o montante de  >US$ 150 bilhões durante o tempo de vigência de sua patente, que esgotou-se em 2011.

Espero ter exemplificado neste post a importância da serendipidade (= perspicácia + atenção) e da sorte que, segundo Pasteur, em Ciência, sempre sorri para quem trabalha e está “ligado” no seu projeto de pesquisa. Portanto, pós-graduandos, cultivem e aprimorem sempre vossa serendipidade, pois na descoberta de fármacos também pode ser um importante ingrediente!
Obrigado por lerem.