Interessante que ao confirmar sua inclusão no vernáculo, pude constatar que muitas definições possíveis da Web, vincula-o às descobertas científicas. Portanto, cabe associá-lo ao processo de descoberta de fármacos, ou “drug discovery”.
Inúmeros
autores já se debruçaram sobre este tema. Várias são suas listas, quanto aos
fármacos frutos destes “acidentes felizes” e alguns estão presentes em muitas daquelas
listas. Decidi que seria melhor focar num destes fármacos, tendo como possível
critério de escolha, a presença unânime, se possível, ou uma presença majoritária
e significativa em muitas delas. Daí emergiu a penicilina, cuja descoberta data
de 1928, feita por Alexander Fleming, um médico escocês que trabalhava como
microbiologista na Inglaterra, no início do século passado.
É fato que a
descoberta da penicilina pode ser considerada, com justiça, como um feito científico
diferenciado do século 20! Entendo que a penicilina mereça ser classificada
como uma das “Moléculas da Vida”, pois foi a mãe dos antibióticos que deram
“vida” a declaração de Pasteur: “La vie
empeche la vie!” Esta frase de
Pasteur referia-se às propriedades que alguns organismos possuíam, através seus
mecanismos químicos de defesa, que tornava-os capazes de matar predadores. De fato, esta frase de Pasteur, retomada no
contexto de Fleming, traduz a base da antibioticoterapia! Substâncias oriundas
de um organismo, que apresentam letalidade a outros.
Foi desta
forma que Fleming iniciou a descoberta fortuita da penicilina, em seus
laboratórios do Departamento de Inoculação do Hospital St Mary´s, em King
Cross, Londres, numa tarde de setembro, tipicamente nublada do fim do verão
londrino, de 1925. Diz a história que ele observou, ao regressar de férias ao
laboratório, uma placa de Petri contaminada com inesperado halo de inibição,
prevenindo o crescimento uniforme de uma cepa de estafilococos, lá dispersada.
A proximidade desta placa à uma janela mal fechada, aos fundos do laboratório
do andar em que ficava o seu, de microbiologia, parecia indicar uma
contaminação fúngica, provavelmente vinda do andar inferior, onde havia um de
produção de vacinas para alergias, utilizando fungos. A partir desta
observação, a serendipidade aguçada de Fleming propiciou a identificação
posterior do fungo contaminante (Penicillium
notarum), e do efeito do componente químico produzido, responsável pela
inibição do crescimento da cepa bacteriana de estafilocos na placa. Sua primeira
publicação sobre o papel das propriedades antibióticas do fungo Penicillium spp. data de dezembro de
1928 e teve o título “Cultures of a
Penicillium”.
Alguns anos se
passaram até que um pesquisador australiano se associou à Cátedra de Patologia
da Universidade de Oxford, Howard Florey, em 1932, e se interessou pela
penicilina descrita por Fleming. Em seguida, em 1938, Ernst D. Chain, um
químico da mesma Universidade de Oxford, se debruçou no estudo da instabilidade
química da penicilina. Os trabalhos destes grupos resultaram numa publicação,
em 1949 e tiveram suporte financeiro posterior, da Fundação Rockefeller, de
Nova Iorque, EUA, que propiciou o isolamento e produção fermentativa da
penicilina, ainda em pequena escala. Outros pesquisadores se associaram,
posteriormente, à equipe de Chain & Florey, como Edward Abraham, que foi
responsável pelos estudos de estabilidade química da penicilina, constatando
que não resistia a acidez do trato gastrointestinal.
Alguns
autores associam a penicilina aos estudos sobre o uso da via injetável para a
administração de fármacos. Não fosse devido à sua labilidade química,
prevenindo seu uso por via oral, provavelmente não se teria aprendido, tão cedo,
sobre a utilização das vias injetáveis para a administração de medicamentos. Também
pode-se associar à penicilina, uma das primeiras iniciativas exitosas de se
aproximar o setor acadêmico, onde iniciou-se a história da penicilina, à
indústria. Esforços de Chain, junto às empresas inglesas da época como Burroughs
Welcome, Boots Co., Imperial Chemical Industries (ICI), para a produção em
escala da penicilina, não lograram sucesso. Por outro lado, Florey fez o mesmo
tipo de esforços junto a empresas americanas, como Merck Co., E. R. Squibb
& Sons, Charles Pfizer Co. e Lederle Laboratories. Após alguns recuos,
Merck, Squibb e Pfizer concordaram em associarem-se num esforço conjunto para
produzirem penicilina. Algum pouco tempo depois, as empresas Abbott, Eli Lilly,
Parke, Davis Co., Upjohn Co. e Wyeth juntaram-se para, em novembro de 1942, nos
laboratórios desta última, produzirem a primeira batelada de penicilina.
Concomitantemente a estes esforços de desenvolvimento da penicilina, nos
laboratórios Dyson Perrin da Universidade de Oxford, Sir Robert Robinson e
colaboradores, estudavam métodos de síntese da penicilina, objetivando elucidar
sua estrutura química. Em fins de 1943, pesquisadores de Oxford e da Merck
concluíam que a penicilina teria uma das duas possíveis estruturas (1) ou (2):
A primeira (1) com um
sistema benzil-oxazolona ligado ao anel tiazolidínico, enquanto que a estrutura
alternativa (2) teria um raríssimo anel de quatro membros b-lactâmico, fundido ao mesmo anel
dieterocíclico. Um esforço inter-laboratorial foi iniciado, visando obterem-se sinteticamente,
ambos compostos, para comprovação da sua estrutura química. A despeito destes
esforços, envolvendo inúmeros laboratórios em ambos lados do Atlântico, nenhum
resultado conclusivo emergiu.
A partir de 1948, a penicilina passou a ser prescrita contra várias
infecções até então letais, merecendo, portanto, a classificação de molécula salva-vidas, surgida pela observação
perspicaz de Sir Fleming. Não somente por justiça e reconhecimento, mas por
mérito científico A. Fleming, H. Florey e E. B. Chain foram agraciados com o
Nobel de Fisiologia e Medicina em 1945, assim como D. C. Hodgkin que, em 1964,
ganhou o Prêmio Nobel de Química, tendo sido a primeira inglesa premiada.
Muitos outros fármacos de grande importância terapêutica surgiram, fruto
de “acidentes felizes”, ou serendipidade, merecendo citação a clorpromazina (3),
clordiazepóxido (4), imipramina (5), simvastatina (6) e sildenafila (7), para
nomear apenas alguns, distribuídos cronologicamente. Especialistas e estudiosos
do tema afirmam que ca. 24% dos fármacos
disponíveis no arsenal terapêutico contemporâneo originaram-se do processo de
serendipidade, diretamente, como vários “first-in-class” e outros membros seguintes
da classe terapêutica (me-too). Por
exemplo, após a simvastatina (6), primeiro fármaco da classe das estatinas, vários
me-too apareceram posteriormente,
destacando-se a atorvastatina (8), considerada a segunda geração da classe
destes anti-lipêmicos inibidores da enzima hidróximetilglutaril-CoA-redutase (HMGCoA-R),
fármaco recordista em vendas na história dos medicamentos, rendendo à Pfizer o
montante de >US$ 150 bilhões durante
o tempo de vigência de sua patente, que esgotou-se em 2011.
Espero ter exemplificado neste
post a importância da serendipidade (= perspicácia + atenção) e da sorte que,
segundo Pasteur, em Ciência, sempre sorri para quem trabalha e está “ligado” no
seu projeto de pesquisa. Portanto, pós-graduandos, cultivem e aprimorem sempre
vossa serendipidade, pois na descoberta de fármacos também pode ser um importante
ingrediente!
Obrigado por
lerem.