Li, já faz um bom tempo, uma frase de Corwin Hansch (1918-2011),
considerado por muitos como o “pai do QSAR”, onde ele afirmava que o Químico
Medicinal é o profissional da Ciência que lida com maior número de variáveis,
concomitantemente. Esta sentença pode ser interpretada como um sinal de
alerta para os grandes riscos inerentes ao processo de descoberta de um novo
fármaco. De fato, pode-se ilustrar o nível de dificuldades ou imprevistos deste
processo colocando-se a Química Medicinal num tabuleiro de xadrez! Neste jogo,
a tomada de decisões é constante e nem sempre se dá em situações simples.
Pessoalmente, gosto desta analogia. Considero o exercício da Química Medicinal
como uma contínua partida de xadrez..., onde se joga com um time de jogadores,
apoiando as decisões ou os movimentos do jogador que fica no tabuleiro!
Mais recentemente li vários artigos, publicados em diferentes periódicos
prestigiosos, sobre fatores que podem influenciar as “tomadas de decisões” do
químico medicinal durante um projeto de drug discovery (DD). Cito apenas
um, cujo título é bastante sugestivo: “....Inside the mind of a medicinal
chemist...” (PS Kutchukian
et al., PLoS One 2012, 7, e48476, DOI:10.1371/journal.pone.0048476.
Considero muito complicado escolher qualidades pessoais, que possam definir
aptidões para se exercer determinadas funções ou atividades profissionais.
Entretanto, arisco mencionar que em Ciência alguns fatores desejáveis podem ser
a curiosidade e persistência, entre outros. Vários autores descrevem como
atributos pessoais relevantes ao sucesso profissional de alguém, a
criatividade, inteligência, experiência e por aí vai. Não vou por este caminho,
meu ponto pode ser exemplificado pela lógica ou não (pela intuição) nas “tomadas
de decisão” dos químicos medicinais envolvidos em projetos de DD. Seja um problema simples, como aonde incluir
um substituinte alquila em um anel benzênico terminal, em uma molécula
promissora, que merece uma otimização. Sua inclusão pode se dar em três
posições: para- (1), meta- (2) ou orto- (2), em relação ao
substituinte já presente (R). A posição para- deverá ser a preferida,
pois manifestará efeitos eletrônicos diretamente sobre a posição de R, sem que se
introduza no anel aromático “dissemetria” que a posição meta- (2
posições) e orto- (2 posições) promoveriam, i.e. os “lados” do
anel ficariam dissimétricos em razão do plano determinado pela ligação do
substituinte R, e complicaria a racionalização do eventual efeito observado,
por fatores conformacionais, ausentes no derivado com substituinte alquila em para-
(1 posição). Além disso, a introdução do grupo alquila em orto- agrava
as consequências conformacionais pelo efeito orto promovido pelo
substituinte novo.
De fato, os substituintes em para- predominam nas moléculas
bioativas. Neste nosso exemplo não ficou definido a natureza do grupo alquila
introduzido. Na figura aparece uma metila, mas sendo um grupamento alquila,
poderia ser qualquer um, a priori. A decisão pela metila pode ser um exemplo de
decisão intuitiva do químico medicinal.
O químico medicinal confia em sua intuição para decidir ou tomar
decisões em programas de pesquisas. Neste exemplo a decisão é simples, porém
quando volumes enormes de dados são disponíveis envolvendo propriedades
farmacodinâmicas e farmacocinéticas de muitos compostos de várias séries
congêneres a “tomada de decisão” requer priorizações bem mais difíceis. Senão,
vejamos: considerando as 69 milhões de substâncias orgânicas cadastradas no Chemical
Abstracts Service (CAS), os 36 milhões de registros científicos e patentes,
vê-se que o espaço químico conhecido é imenso e em contínuo crescimento. Os 3
milhões de químicos ativos no mundo publicaram mais de 800.000 documentos, contendo
inúmeras novas moléculas. O número de pedidos de patentes em química atingiu
340.000, descrevendo mais substâncias. Metade dos medicamentos existentes em
1996, podiam ser descritos pelos 32 scaffolds mais frequentes e suas 20
principais cadeias laterais representavam 73% do total identificado em todos os
medicamentos comercializados na época. Dados mais recente indicam que são 1060
moléculas passíveis de apresentarem propriedades necessárias aos fármacos,
sendo que os 50 principais scaffolds estão presentes em 50-52% das moléculas
dos medicamentos utilizados. Inúmeros autores afirmam que os anéis aromáticos
são os principais scaffolds dos fármacos contemporâneos. Por tudo isso,
vê-se que a intuição química, frequentemente utilizada pelos químicos medicinais
hábeis e experientes, é um fator bem reconhecido, no complexo processo de “tomada
de decisões” da Química Medicinal.
Obrigado
por lerem.
Pretende-se tratar de temas, opiniões, e comentários sobre a Ciência dos Fármacos, seu uso seguro e benefícios à sustentabilidade e qualidade de vida. Privilegiaremos, sempre que possível, aspectos relativos à história da descoberta/invenção (drug discovery - DD) de fármacos, contributivos à formação contínua em aspectos, princípios e fundamentos da Química Medicinal, como disciplina central do processo de DD.
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domingo, 9 de junho de 2019
A Intuição em Química Medicinal
Professor Emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ