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domingo, 8 de abril de 2012

Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos

Os fármacos anti-inflamatórios não-esteróides

(AINEs = NSAI's)

     Entramos na décima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal e vamos tratar agora dos fármacos antiinflamatórios não-esteróides (NSAI), que são fármacos que possuem também importantes propriedades analgésicas.
     O início desta história se dá nos idos dos anos 50, do século passado, quando inicia-se o boom dos esteróides que conduziu à pílula contraceptiva e abriu espaço para o conhecimento do papel dos hormônios esteroides na fisiologia. Data desta época, a identificação das propriedades anti-inflamatórias dos corticóides e, pouco depois, a compreensão de seus efeitos colaterais, severos, restringindo seu emprego na terapêutica. A lacuna deixada pela cortisona enquanto anti-inflamatório motivou, de um lado, a busca de análogos estruturalmente modificados capazes de serem empregados com mais segurança na terapêutica de quadros inflamatórios crônicos e de outro estimulou o estudo de análogos do ácido acetilsalicílico (AAS), conhecido fármaco analgésico, antitérmico, com propriedades anti-inflamatórias e também apresentando efeitos irritantes ao nível da mucosa gástrica. Estes esforços de pesquisa foram recompensados pela identificação dos fenamatos, classe de agentes anti-inflamatórios nascidos no extinto laboratório Parke-Davis, ilustrados na Figura 1 pelos derivados de ácidos benzóicos, mefenâmico e meclofenâmico (1960). Ambos são estruturalmente relacionados ao AAS possuindo o padrão do ácido antranílico (orto-aminobenzóico), isóstero do ácido salicílico, presente no AAS.



   A história continua e aplicando o mesmo princípio da Química Medicinal, pesquisadores dos laboratórios Ciba-Geigy (atual Novartis) inventam o diclofenaco, em 1973, fármaco anti-inflamatório não-esteróide comercializado com os nomes fantasias de Voltaren® e Cataflan®, estruturalmente relacionado ao ácido meclofenâmico, diferenciando-se deste por ser um derivado homólogo, linear, pertencendo a classe dos ácidos arilacéticos, com um grupamento metilênico a mais situado entre a função ácido carboxílico e o anel aromático. Enquanto isso, nos laboratórios Merck, Sharp & Dohme (MS&D), nos EUA foi desenvolvido, após extenso programa de pesquisa, o diflunisal, fármaco da classe dos salicilatos que apresentou o mesmo perfil do AAS. No início dos anos60, T. Y. Shen, Alfred Burger Professor of Medicinal Chemistry na Universidade de Virginia, EUA, lê artigo que atribui propriedades flogísticas à serotonina. Sabendo do caráter básico deste mediador inflamatório indólico (5-hidróxi-triptamina), formula a hipótese, que se mostrou acertada, de que ácidos 3-indolil-acéticos podiam possuir propriedades antiinflamatórias por possuirem propriedades químicas opostas ao mediador inflamatório endógeno. O Prof. Shen teve a colaboração essencial de um farmacologista da MS&D, Dr Charles A. Winter, que desenvolveu um protocolo farmacológico in vivo, o ensaio do edema da pata do rato induzido por agentes flogísticos, adequado ao screening de novas moléculas com propriedades antiinflamatórias. Surge no cenário dos fármacos NSAI a indometacina, em 1963, um diferencial à época para o tratamento de quadros diversos de inflamações, inclusive crônicos. Devido à presença da função amida, a indometacina é hidrolisada pela ação de amidases produzindo o ácido indolil-acético correspondente que é inativo e responsável pelo aparecimento de disturbios centrais em alguns pacientes. Esta classe terapêutica possui hoje diversos representantes dos ácidos aril- e heteroarilacéticos dentre os quais encontram-se o pró-fármaco sulindaco (MS&D, ClinorilR), e os fármacos etodolaco (Almirall Ltd) e cetorolaco (ACI).
   
Nesta mesma época, Dr Steward Adams, trabalhando na empresa Boots em Nottingham, Inglaterra, cria um bioensaio empregando a radiação ultra-violeta para induzir uma reação inflamatória em animais de laboratório, que permite avaliar propriedades antiinflamatórias em uma série de derivados de ácidos para-alquil- e para-arilfenilacéticos que indica o ácido para-isobutilfenil acético (ibufenac) como sendo quatro vezes mais potente que o AAS. Este composto é lançado no mercado mas poucos anos após é retirado pelos efeitos hepáticos que provocava, causando intensa icterícia. Desta forma, o grupo de pesquisadores da Boots, liderado por Adams, identifica, no análogo ácido 2-fenilpropiônico correspondente, denominado ibuprofeno, o homólogo ramificado do ibufenac, o primeiro fármaco NSAI da classe dos profenos. O ibuprofeno (Figura 1) possui em sua estrutura um substituinte iso-butila em relação para ao término ácido no anel benzênico mimetizando, com estes quatro átomos de carbono saturados, o sítio de interação hidrofóbica representados pelos segundos anéis aromáticos presentes em todos os fármacos ilustrados na figura. Outros fármacos desta classe são desenvolvidos pelas empresas concorrentes como o naproxeno (Syntex, 1976), cetoprofeno (Rhône Poulenc) mais potente que o protótipo da série, o benoxaprofeno (1980 - que veio posteriormente a ser retirado) e o fenoprofeno são descobertos pela Eli Lilly, entre outros. Esta classe de derivados NSAI possui um centro estereogênico, criado pela substituição de um dos átomos de hidrogênio do grupamento metilênico dos ácidos aril-acéticos presursores. Com isto esta série homóloga dos profenos é representada por dois possíveis enantiomêros e sabendo-se que os alvos-terapêuticos são enantioespecíficos, i.e. discriminam enantiomêros, reconhecendo a quiralidade do fármaco, não é surpreendente observar que apenas um dos enantiomêros seja ativo. No caso do naproxeno, o grupo de pesquisadores liderados por Joseph Fried,  na Syntex, identificou o enantiomêro (S) como aquele reconhecido pelo alvo-terapêutico, i.e. a prostaglandina-endoperóxido sintase (PGHS), vulgarmente denominada de cicloxigenase (COX). Desta forma a Syntex passou a comercializar o naproxeno na forma enantiopura e foi o (S)-naproxeno o primeiro fármaco NSAI a ser comercializado como eutomêro, i.e. o enantiomêro ativo. Posteriormente, identificou-se uma enzima que atua invertendo a quiralidade dos derivados profênicos, transformando o distomêro, enantiomêro (R) no isômero bioativo (S) (Figura 2, abaixo).
  
    
     A história dos fármacos NSAI é longa, pois em 1992 identificaram-se a isoforma 2 da COX e em poucos anos apareceram os coxibes como a grande esperança para o tratamento de quadros inflamatórios crônicos sem os riscos associados a irritação do trato gástrico, provocado pelos inibidores da isoforma 1 até então conhecidos. Este segundo capítulo da história dos anti-inflamatórios não-esteróides será tratado na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal, a décima-primeira.
Obrigado por ler.