Neste post, próximo a mais um Natal, vou
exemplificar como podem os grupos funcionais cooperarem, de forma a promoverem
a formação de espécies químicas de reatividade distinta de cada um
isoladamente. O exemplo que vou utilizar é o da mitomicina C, quimioterápico oncolítico
de origem natural, descrito em 1950, por pesquisadores japoneses, isolado de
cepas de Streptomyces
caespitosus. Este fármaco possui em
seu esqueleto tetracíclico, grupos funcionais distintos como carbamato primário
(em azul), a função para-quinona (em
lilás) e um grupo aziridina (em verde) - análogo aos epóxidos, mas nitrogenado.
O estudo do mecanismo molecular de sua ação, como agente intercalante do DNA, evidenciou a formação de aduto covalente duplo, distinto daquele simples que se originaria da reação nucleofílica com bases nitrogenadas do DNA, sobre o anel aziridínico, conforme ilustrado a seguir:
O grupo funcional aziridina (em verde), possui elevada tensão angular em seu ciclo de três membros nitrogenado, pois tendo hibridação sp3 de ângulo 109,50 característicos, apresenta ângulo de ligação em 600, que atribui ao sistema aziridínico, sua elevada reatividade, mimetizando o de um epóxido.
O estudo do mecanismo molecular de ação da mitomicina C (V.N. Iyer, W. Szybalski, Proc. Nat. Acd. Sci 1963, 50, 355) evidenciou que a formação do aduto nucleofílico duplo, envolve a cooperação de todas suas funcionalidades. A figura seguinte exemplifica isso:
Ao nível da função para-quinona (em lilás) ocorre uma biorredução, produzindo o
intermediário reativo bis-fenolíco. Em seguida, esta espécie sofre eliminação
de HOMe, produzindo um iminium no sistema biciclo[3.3.0]aza-octano contido no
padrão tetracíclico da mitomicina C. A subsequente abstração de Ha
leva à formação do intermediário estirênico ativado que, em seguida, tem o
hidrogênio ácido de uma das hidroxilas fenólicas abstraído por base, levando ao
substrato reativo da primeira adição nucleofílica do tipo 1,6 por base
nitrogenada do DNA, sobre a função dienona transiente. O primeiro aduto mitomicina
C-DNA é bioformado, apresentando uma função carbamato alílica, que pode então
contribuir para a formação do aza-dieno intermediário, substrato para o segundo
ataque nucleofílico, agora intramolecular, promovido pelo aduto inicial,
produzindo a espécie final bis-aduto mitomicina C-DNA.
Este mecanismo molecular racionaliza uma
possibilidade para explicar a ação deste fármaco ao nível do DNA. A mitomicina
C atua, devido sua reatividade química, em outros alvos terapêuticos (e.g. tioredoxina redutase; M.M. Paz et
al., Chem. Res. Toxicol. 2012, 25, 1502) sendo, portanto, um fármaco
multialvo.Este exemplo ilustra como a elucidação do mecanismo molecular de ação de um fármaco, através do conhecimento da participação dos grupos funcionais, que neste caso de forma cooperativa, modifica a reatividade de cada um, produzindo espécies reativas próprias, responsáveis por mecanismos moleculares de ação distintos daquele se considerada a reatividade de cada grupamento funcional, isoladamente. Neste post utilizando um fármaco natural polifuncionalizado – mitomicina C – identificamos a função carbamato primário que, em processo envolvendo os outros grupos funcionais da molécula – para-quinona e aziridina – é ativado ao carbamato alílico, que atua como grupamento abandonador, de caráter farmacofórico, para promover a formação do intermediário eletrofílico transiente que produziu o aduto duplo mitomicina C-DNA, em processo de bioativação redutiva enzimática, único.
Obrigado por lerem.