Esta é a quadragésima oitava postagem que provavelmente vai fechar 2015.
Pensei que chegaria à quinquagésima neste ano, mas não deu. Tant pis!
Algumas moléculas de fármacos
têm características particulares, seja sob o ponto de vista estrutural, seja
sob a ótica conceitual ou até histórica. É o caso da morfina e do ácido acetil
salicílico (AAS), nosso tema da vez.
Embora ambos sejam fármacos analgésicos, têm
origens bem distintas, diferentes histórias, estruturas e mecanismos
farmacológicos de ação (MoA). Desde já fica claro que “obedecem” ao princípio
da similaridade molecular. Ou seja: moléculas similares, propriedades
similares! Embora classificados como analgésicos, as dissimilaridades moleculares são flagrantes, indicando que o MoA
teria de ser obviamente distinto.
Qualquer que seja a
fonte consultada, sobre a origem dos fármacos, ambos estarão, muito
provavelmente presentes, ilustrando o tema. A história da morfina é clássica,
se pudermos dizer assim. Pode-se apre(e)nder muita Química Medicinal,
conhecendo-a. Foi trazida por Marco Polo do Oriente para a praça San Marco, em
Veneza e cedo se descobriu suas potentíssimas propriedades analgésicas centrais,
denominando-a como um potente fármaco hipno-analgésico. Foi amplamente estudada
desde seu isolamento e purificação pelo farmacêutico alemão Friedrich Setürner,
em 1805, que homenageou suas propriedades narcóticas pela denominação
emprestada de Morpheu, Deus do sono. Estudos de strip-tease molecular levaram à classe das N-metil-4-fenilpiperidinas, primeiros analgésicos centrais
sintéticos, oriundos da morfina. A identificação dos seus sub-tipos de
receptores centrais e o reconhecimento da existência das endorfinas são também decorrentes
de sua descoberta.
Enquanto a morfina tem este caráter
pioneiro dentre os alcaloides fenantrênicos, o AAS tem sua marca pioneira por
ter sido o primeiro fármaco sintético produzido industrialmente como tal pela
Bayer, também na Alemanha. Além de serem, por que não, moléculas “conterrâneas”,
também motivaram prêmios Nobel! A primeira devido ao excelente trabalho de
elucidação estrutural realizado por Sir
Robert Robinson, em 1925, que ganhou o prêmio de Química em 1947. Interessante
observar que a estrutura da morfina tem na parte “norte” do esqueleto
pentacíclico um sítio básico, ionizável, referente à presença da função amina
terciária endocíclica e na parte “sul” da molécula os grupos funcionais
oxigenados, que podem contribuir com ligações-H, doadores e aceptores, para
interações com os biorreceptores. De certa forma, a morfina respeita as regras
de Lipinsky..., embora este não as tenha criado para ela. Aliás, nem sempre
assim é com os fármacos de origem natural e as regras....! Há mais um elo
interessante entre a morfina e o AAS! Lá pelos idos do século dezenove a reação
da moda na química orgânica, era a acetilação. Mais ou menos tudo que fosse
acetilável, era acetilado! Já vimos um pouco disso na postagem denominada “Os acetatos
famosos”. Quando a morfina foi bis-acetilada, na Bayer, em 1874, obteve-se a
heroína ou a 3,6-diacetilmorfina, que tendo maior lipofilia apresentou efeitos
centrais mais potentes. Esta acetilação foi apenas alguns anos anterior à
acetilação do ácido salicílico, feita por Albert Hoffmann, nos mesmos laboratórios
da Bayer, visando reduzir seus efeitos gastro-irritantes e melhorar suas
propriedades analgésicas. O AAS também motivou um prêmio Nobel, agora de
Fisiologia e Medicina, em 1982, a três pesquisadores pela elucidação de seu
mecanismo farmacológico de ação. Foram eles: John R Vane, Bengt Samuelsson e
Sune Bergström. Curiosamente, o AAS não teve nenhum respeito pelas regras do Sr
Lipinsky...., mas é um dos fármacos mais utilizados do mundo, sendo que o total
do que se consome de AAS mundialmente pode coloca-lo na escala superior à 50000
toneladas/ano (uma escala “quase petroquímica”). Enquanto isso, o uso de morfina como
analgésico foi estimado em 45000 kg, em 2013...!
A complexa estrutura química da
morfina atraiu o interesse de muitos químicos orgânicos de síntese. Sua
primeira síntese total foi realizada na Universidade de Rochester, EUA, por Marshall
D. Gates, Jr., em 1952. Depois disso muitas outras vieram como a descrita por K.
C. Rice, em 1980; David Evans, em 1982; P. L. Fuchs,em 1988; K. A. Parker, em
1992; L. E. Overman, em 1993; Joham Mulzer, em 1996; J. D. White, em 1999; D. F. Taber e B. Trost,
independentemente, em 2002; T. Fukuyama,
em 2006; C. Guillou, em 2008 e Gilbert Stork
em 2009, sendo esta a única rota estereosseletiva para a morfina, realizada
dois séculos depois de seu isolamento!Finalmente, se a morfina com seus 17 átomos de carbono distribuídos em seu sistema pentacíclico com 5 centros estereogênicos, foi responsável pela premiação de um nobelista, o AAS com apenas 9 átomos de carbono e sem nenhuma complexidade molecular, nem quiralidade, “premiou” três nobelistas, uma média de um premiado para cada 3 de seus 9 átomos de carbono!!! Ótima média, não?!
Boas Festas e obrigado por lerem.