Pesquisar este blog

terça-feira, 5 de junho de 2012

Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos - Parte XII: Os tinibes

      Entramos na décima segunda parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal e chegamos ao final do século XX, quando a quimioterapia do câncer ganhou importantes fármacos, representados pelos inibidores de tirosina-quinases (TK´s) que representam, quiça, a última inovação terapêutica do século. São destes fármacos que vamos tratar nesta ocasião.
      A quimioterapia do câncer teve nos alcaloides bis-indólicos da Vinca (Catharanthus roseus (L.) G. Don.), vincristina (VCR) e vimblastina (VCB), um dos seus primeiros recursos. Estes fármacos, de origem natural, com propriedades antimitóticas, datam da década de 50 do século passado e foram objeto de estudos de diversos grupos de pesquisa, tendo sido isolados por Ralph Noble e Charles Beer da Universidade de Western Ontario, Canadá, que identificaram suas propriedades depressoras nas células brancas sanguíneas. Isolados das folhas e flores de Vinca, pequenos, mas vistosos arbustos, tiveram suas estruturas elucidadas pelo grupo de pesquisa do Professor Ernest Wenkert, químico austríaco trabalhando na Universidade de San Diego, EUA, mais ou menos na mesma época em que os primeiros aparelhos de ressonância magnética nuclear de hidrogênio ficaram acessíveis. Claro que nesta época em nada se comparavam a aqueles disponíveis nos dias de hoje, que os superam em ca. 400 vezes, em potência de campo. Estes produtos naturais foram inicialmente bioensaiados para o tratamento da diabetes, entretanto mostraram-se capazes de produzirem severa depressão na atividade da medula o que sugeriu sua eventual aplicação na terapia do câncer. Estudos subsequentes conduzidos por Gordon Svoboda nos laboratórios Eli Lilly, EUA, culminaram com seu lançamento na terapêutica em 1953, com indicação para o tratamento de leucemias e linfomas, inclusive em crianças, devido às propriedades antimitóticas e antitubulinícas destes compostos.
     Pode-se dizer que é na quimioterapia do câncer que encontramos um dos melhores exemplos da contribuição dos produtos naturais à terapêutica. Em parte, graças a um ambicioso programa do National Cancer Institute dos EUA, iniciado em 1960, visando a identificação de propriedades citotóxicas em diversas cepas celulares, de extratos vegetais, inicialmente obtidos junto ao Departamento de Agricultura norte-americano e posteriormente oriundos do mundo inteiro. As amostras eram estudadas no Research Triangle Park, na Carolina do Norte, EUA. Esta busca de novos padrões moleculares citotóxicos resultou alguns dos mais eficientes fármacos anti-câncer que integram nosso arsenal terapêutico contemporâneo como o paclitaxel, sesquiterpeno polifuncionalizado, de estrutura química inusitada, isolado de Taxus brevifolia por Monroe Wall e Mansukh Wani dos laboratórios do Triangle Research Park. A despeito de sua complexa estrutura química, foram descritas sínteses totais para este produto natural por Robert A Holton da Universidade da Florida e K C Nicolauo do Scripps, California em 1994, além daquela relatada por Samuel J Danishefsky da Universidade de Columbia, Nova Iorque, EUA, em 1996 e uma quarta por Paul A Wender, em 1977. Para coroar os esforços do grupo de pesquisa do Research Triangle Park, foi isolado, nos mesmos laboratórios, a camptotecina, alcaloide quinolínico de biossíntese mixta, que caracterizou-se por apresentar em sua estrutura pentaciclíca uma sub-unidade iridoidíca contida num anel alfa-hidróxilactona. Vale mencionar que ambos os produtos naturais que se tornaram fármacos, descobertos por Wall e Wani, possuíam estruturas químicas originais, com padrões moleculares inéditos e apresentaram novos mecanismos farmacológicos de ação, representando, em ambos os casos, autênticas inovações terapêuticas. Enquanto que o paclitaxel (TaxolR) mostrou-se um inibidor de tubulinas, a camptotecina, isolada de Campthoteca acuminata, foi o primeiro fármaco anticâncer a atuar como inibidor de topoisomerase-1. Além destas felizes coincidências, ambos compostos inspiraram outras substâncias, sintéticas ou hemi-sintéticas, que ampliaram o impacto terapêutico de suas descobertas. Desta forma o paclitaxel inspirou o docetaxel, cabazitaxel e ortataxel, sendo este último ativo por via oral, enquanto que a camptotecina levou aos derivados piridocarbazóis da classe dos tecanos (e.g. irinotecano e topotecano). Além destes produtos naturais vegetais, outros como os derivados da podofilotoxina, etoposido e tenoposido, completam os exemplos da importância dos produtos naturais na quimioterapia do câncer. Não se deve deixar de mencionar os derivados de origem microbiológica, representados por alguns antibióticos macrociclícos e mais recentemente pelas epotilonas A e B, isoladas de Sorangium cellulosium. Estes últimos produtos naturais são lactonas macrociclícas de 16 membros, que nas mãos dos químicos medicinais dos laboratórios Bristol Meyers-Squibb (BMS) levaram a ixabepilona (IxempraR), análogo macrociclíco que possui em substituição à função éster macrociclíco, de fácil hidrólise enzimática na biofase, uma função bioisostérica macrolactama, resistente às esterases, lançado no mercado em 2007.
A história dos tinibes se inicia nos idos dos anos 70, quando as quinases despertaram o interesse de inúmeros grupos de pesquisas, acadêmicos e industriais, como alvo terapêutico possível, para o tratamento de várias doenças. Após os estudos do genoma humano se identificam ca. 500 quinases. Estas enzimas representam importante família de enzimas fosforilantes, utilisando o ATP como reagente de fosforilação, que modulam importantes respostas celulares, ativando várias cascatas de sinalização. Em 1973, Janet Rowley e colaboradores determinam que a parte faltante do cromossomo 22 – cromossomo Filadélfia - tinha sido translocada para o cromossomo 9, em pacientes com leucemia mielóide crônica (CML). Em anos seguintes, foi estabelecido que um gene de cada cromossomo (Bcr no cromossomo 22 e Abl no cromossomo 9), fundiam-se para formar um novo gene Bcr-ABl que produzia uma proteína que provocava a CML. Deve-se aos trabalhos de David Baltimore, Massachusetts, EUA, que identifica a natureza desta proteína como sendo uma quinase. Alguns especialistas estimam que ca. 25% dos projetos de pesquisa em novos fármacos no mundo tenham estas proteínas como alvos terapêuticos. Na classe das quinases encontram-se as tirosinas-quinases (TKs), que promovem a fosforilação de proteínas na hidroxila da tirosina, ativando mecanismos celulares que estimulam sua proliferação e onde se enquadra a proteína caracterizada por Baltimore. Nos laboratórios Ciba-Geigy (atual Novartis) iniciou-se, em 1982, um programa de pesquisas, liderado por Jürg Zimmermann, visando identificarem-se um inibidor de quinases. As empresas farmacêuticas que descobrem ou inventam fármacos, iniciavam, nesta época, com muita expectativa, o uso de técnicas robotizadas de avaliação maciça de amostras (high-throughput screening - HTS), oriundas ou não de coleções de substâncias. Nestes estudos foram identificados na Ciba-Geigy, derivados 2-fenilaminopiridinícos (em cor de rosa na estrutura do imatinibe abaixo), capazes de inibirem a proteína-quinase C (PKC) usada nestes ensaios in vitro. A partir deste composto inicial, identificado neste screening, várias modificações moleculares foram sendo introduzidas, visando potencializar seu efeito sobre outras quinases, dentre as quais estavam a Abl-Bcr quinase, enzima da classe das TKs. Desta forma, os químicos medicinais chegaram à estrutura do imatinibe (GlevecR), primeiro inibidor de TK introduzido no mercado, em 2001 pela Novartis. Vale menção o fato de que a introdução do grupo metila na posição orto do sistema diarilamina do imatinibe, foi um adereço estrutural crítico para assegurar a conformação adequada à seletividade sobre a Abl-Bcr TK. O sucesso do imatinibe, desenvolvido na Novartis, com perfil de seletividade sobre TKs para o tratamento do câncer, representava um novo mecanismo de controle desta doença e levou as empresas farmacêuticas concorrentes a identificarem vários outros fármacos me-too com perfil inibidor multi-TK’s e com diferentes indicações terapêuticas para outros tipos de câncer, como gefitinibe (IressaR Astra-Zeneca), dasatinibe (SprycelR, BMS), sorafenibe (NexavarR, Bayer e Onyx Pharmaceuticals), nilotinibe (TesignaR, Novartis), lapatinibe (TykerbR, GSK), sunitibe (SutentR, Pfizer), ruxolitinibe (JakafiR, Incyte Pharmaceuticals e Novartis) e crizotinibe (XalkoriR, Pfizer), entre outros. A figura abaixo contém as estruturas de alguns tinibes indicando por cores a similaridade molecular entre estes fármacos.
     
     O mesilato de imatinibe foi o primeiro exemplo de sucesso da aplicação da técnica de HTS de coleções de substâncias concomitante à técnicas de desenho molecular da Química Medicinal, que representou uma importante inovação terapêutica.


      Concluindo esta parte estamos encerrando nossa Linha do Tempo da Química Medicinal referente às descobertas ou invenções terapêuticas do século XX e nas próximas partes passaremos às inovações ou descobertas deste século, com mais de uma década vivida.
       Obrigado por ler.