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sábado, 10 de dezembro de 2011



Nesta nossa Linha do Tempo da Química Medicinal atingimos a quinta parte e vamos tratar da invenção do propranolol, primeiro fármaco anti-hipertensivo atuando como antagonista seletivo de receptores tipo-beta da adrenalina.
As doenças cardiovasculares (DCV) são responsáveis por inúmeros óbitos, sendo consideradas uma das mais importantes doenças crônicas não transmissíveis. Estima-se que as DCV mataram mais de 18 milhões (2009) de pessoas no mundo, podendo vitimar 24 milhões em 2030, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Estes elevados índices de mortalidade têm inúmeras causas que se agravam com o estilo de vida atual da sociedade ocidental exigindo atenção redobrada dos sistemas públicos de saúde no mundo. O uso de medicamentos ditos beta-bloqueadores representam, até hoje, importante instrumento de controle destas patologias associadas a hipertensão e à época do seu lançamento, em 1964, o propranolol pode ser considerado como marco na inovação terapêutica, tendo modificado a face da medicina cardiovascular.


A história começa por volta da metade do século passado quando os laboratórios Eli Lilly, em Indianópolis, EUA, iniciaram projetos de pesquisas visando obter medicamentos que atuassem ao nível da resposta fisiológica da adrenalina, como bronco-dilatadores. Neste contexto, John Mills, um químico orgânico da Divisão de Síntese Orgânica, sintetizou alguns análogos modificados da adrenalina, entre eles o derivado com substituinte isopropila na função amina secundária terminal, denominado isoproterenol. Este derivado com grupamento estericamente mais volumoso do que a substância original, foi posteriormente modificado ao nível dos substituintes hidroxilados do sistema catecolíco, substituídos por dois átomos de cloro, invertendo a natureza hidrofílica da catecolamina fisiológica, motivado pela busca de propriedades anti-adrenérgicas no novo análogo. Este derivado, número 20255 e denominado dicloroisoprenalina (DCI), foi estudado nos laboratórios de farmacologia liderado por Irwin Slater, que descreveu suas propriedades anti-adrenalina, em 1958, numa publicação feita com co-autoria de C. E. Powell no Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics (JPET). Os autores não fizeram nenhuma menção aos sub-tipos de receptores adrenérgicos descritos por Raymond Ahlquist, dez anos antes. Aliás, a teoria de adrenoreceptores duais de Ahlquist, foi duramente rejeitada numa primeira tentativa de publicá-la no JPET, editado pela Sociedade Americana de Farmacologia e Terapêutica Experimental, o que o levou a submeter seu manuscrito ao American Journal of Physiology que o publica, em 1948. À época havia uma tendência nos farmacologistas, influenciados por Clark, Gaddum, Ariens, entre outros, em investigarem apenas os efeitos das substâncias sobre receptores, sem maiores preocupações com os sub-tipos. Ao contrário, Ahlquist aborda o tema dos receptores em seus estudos, simpático ao estilo de Ehrlich, que já havia sugerido distinção entre biorreceptores anos antes. Isso o levou a reconhecer e propor, pioneiramente, a natureza alfa e beta dos sub-tipos de receptores adrenérgicos, podendo ser considerado o pai da farmacologia cardiovascular.

Em 1957, numa conferência apresentada na reunião anual da Federação Americana de Sociedades de Biologia Experimental, ocorrida em Chicago, Slater anuncia os resultados dos efeitos do DCI na resposta adrenérgica, que estariam publicados um ano após. Nesta ocasião, estava presente na plateia Neil Moram, Chefe do Departamento de Farmacologia da Emory University que, adepto da teoria dual de Ahlquist, pede a Slater amostras do DCI para estudar em seu laboratório em Atlanta. No ano seguinte, Moran, em colaboração com Marjorie Perkins, publica no mesmo JPET seus resultados, apontando para a seletividade do DCI sobre os receptores beta-adrenérgicos do coração, observados em modelos de cães. Estes resultados chegaram ao conhecimento de James W. Black, médico escocês que, desde o tempo em que lecionava fisiologia na Universidade de Glasgow, se interessava na fisiopatologia da angina e outras doenças cardíacas. Em atividade nos laboratórios da Divisão Farmacêutica da Imperial Chemical Industries (ICI), em Londres, Black se interessava por substâncias que pudessem ter efeitos beta-bloqueadores e ensaia em seus modelos o DCI e alguns derivados sintéticos obtidos por John Stephenson, em 1959, na ICI. Entre estes está o pronetalol, derivado onde o sistema orto-diclorobenzeno do DCI foi substituído por um grupo naftila, comparável em termos de hidrofobicidade e que apresentou importantes propriedades beta-bloquadoras, seletivas, tendo sido ativo por via oral e lançado no mercado para o tratamento da angina. Algum tempo depois, observaram-se em pacientes tratados com o pronetalol, importantes efeitos hipotensores, confirmados em pacientes hipertensos. Ensaios de toxicidade crônica com pronetalol evidenciaram efeitos carcinogênicos que restringiram a indicação do fármaco apenas para pacientes hipertensos em risco de vida. Novas modificações moleculares foram então introduzidas, chegando-se ao composto número ICI 45520, em que aumentaram-se a distância da cadeia hidróxi-etilamina ligada ao anel naftalênico do pronetalol pela introdução de uma sub-unidade oximetilênica (-OCH2), identificando-se o alfa-naftol como matéria-prima de escolha para sua síntese, chegando-se ao propranolol. Desta feita, observaram-se para este novo análogo batizado de InderalR, importantes e seletivas propriedades beta-bloqueadoras, que veio a ser o primeiro fármaco, lançado em 1964, indicado para o controle da hipertensão agindo por este, então novo, mecanismo de ação e representando importante inovação terapêutica. Após o sucesso observado pelo propranolol para o tratamento da hipertensão e arritmias cardíacas, foram inúmeras as cópias terapêuticas (me-too) introduzidas, e melhoradas (me-better) exemplificadas pelo alprenalol, oxprenolol, timolol, entre outros.

A invenção do propranolol, por Black e colaboradores, foi crucial para consolidar as bases moleculares da existência e envolvimento dos biorreceptores nas respostas terapêutica dos fármacos, que até seu surgimento, era matéria polêmica entre os farmacologistas da época. Ademais, sua descoberta também ilustra a importância das ideias de Ehrlich e Fischer na construção do conhecimento em Química Medicinal ao longo do século XX.
Sir James Black, repetiu, alguns anos após, com sucesso, a mesma abordagem que o levou ao propranolol e que podemos definir como abordagem fisiológica - onde os aspectos clínicos da doença a ser tratada orientam a escolha do alvo terapêutico para o futuro fármaco - ao inventar a cimetidina, outro fármaco inovador surgido em 1975, agora no laboratório Smith, Kline & French, na Inglaterra. Este fármaco foi o primeiro antagonista-seletivo de receptores histaminérgicos do sub-tipo 2 com indicação terapêutica para o tratamento da úlcera péptica e que estará na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal.

Por estas marcantes contribuições à terapêutica, Sir James Black foi premiado com o Nobel de Medicina, em 1988, ao lado de Gertrude Belle Elion e George Hitchings, outros brilhantes inventores de fármacos, seus contemporâneos.
Boas Festas e obrigado por lerem.

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