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terça-feira, 5 de outubro de 2021

Molnupiravir, um anti-viral para tratamento oral da Covid-19?

   Tenho participado, como convidado, em várias lives de diversas naturezas, neste trágico período que vivemos devido a Covid-19. Promovidas por diferentes fóruns e tratando de aspectos relevantes do processo de inovação farmacêutica, certamente, motivadas por este nosso momento. Concordo com os autores que consideram a inovação farmacêutica uma das mais importantes, dentre aquelas de natureza tecnológicas, e a que mais depende do avanço do conhecimento científico, i.e. da Ciência. O retorno social, em benefícios à sociedade, que os novos medicamentos e as vacinas representam, são hoje bem melhor compreendidos pela sociedade. Tanto que nestes tempos difíceis, Holden Thorp,  -Chefe da prestigiosa revista Science, disse em uma entrevista: “This is a time when people are thinking about science in a way that they never have” ( A Widener, Science 2020) esta afirmativa dá contornos definitivos ao reconhecimento da importância da Ciência em nossa sociedade contemporânea.

Nestas lives tenho discutido as distinções entre a etapas de pesquisa e de desenvolvimento, integrantes do complexo processo de inovação radical farmacêutica. Embora esta discussão possa parecer de cunho meramente acadêmico, pode contribuir significativamente para o melhor entendimento das fronteiras, entre uma e outra etapa, de forma a facilitar as decisões go-no go cruciais no processo, envolvendo as pequenas moléculas em estudo por grupos de pesquisas acadêmicos ou industriais e que ocorrem na fase anterior àquela do desenvolvimento. Algumas numerosas vezes, tenho observado o emprego equivocado do termo desenvolvimento, quando caberia, para maior precisão, o termo pesquisa.

Este aparente dilema, passa a ser significativo quando entendemos a importância da necessidade de aproximação efetiva entre a universidade e as empresas farmacêuticas, para concretizarmos a translacionalidade do conhecimento gerado na academia e sua transferência para o setor produtivo empresarial, habilitado a colocá-lo nas prateleiras das farmácias, à disposição da sociedade. Neste contexto, iniciativas que promovam esta aproximação universidade-empresa / empresa-universidade passam a ser de significativa importância. Neste sentido, inúmeros esforços têm sido exaustivamente realizados pelo INCT-INOFAR, coordenado pelo autor desta postagem, buscando aproximação, produtiva, entre os principais atores deste cenário da inovação farmacêutica radical.

Em 2009, após praticamente três décadas da descoberta dos primeiros anti-virais, pelo seu grupo de pesquisa na Univeridade de Emory, Georgia, EUA, o Professor Dennis Liotta e alguns colaboradores, criou o Emory Institute for Drug Discovery (EIDD), dedicado à identificação de novos candidatos a fármacos antivirais, cumprindo a fase inicial de pesquisa dos ensaios pré-clínicos, até às provas de conceito. No ano de 20012, houve uma alteração na denominação do EIDD que passou a se chamar: Emory Institute for Drug Development, preservando a sigla. O EIDD tem focado em fármacos antivirais, para tratamento de viroses RNA-dependentes, uteis para controle de HIV, HBV, CMV, HSV e influenza. O Professor Liotta, liderou a equipe de pesquisadores que identificou compostos análogos de nucleosídeos, pró-fármacos dos nucleotídeos correspondentes, representados pelo emtricitabina (EntrivaR), indicado em combinação com outros antivirais, para combater o HIV. Este fármaco é um análogo fluorado da lamivudina, que por sua vez é um pró-fármaco análogo sulfurado da citidina, descoberto pelo mesmo grupo, em 1995.


Os esforços de pesquisa do EIDD permitiram identificar o composto EIDD-2801, que tem o núcleo heterocíclico bis-nitrogenado da citosina, modificado pela introdução de uma função oxima (=N-OH), enquanto que o fragmento furanosídeo, observou a inclusão de um éster do ácido isobutírico. A presença da oxima, introduz uma característica molecular bastante interessante à molécula EIDD-2801, por permitir a presença de dois tautômeros que mimetizam os pontos farmacofóricos das duas bases: uridina e citidina e, portanto, permite interagir, por complementaridade molecular com ambos resíduos da guanosina e adenosina, respectivamente, dependendo do tautomêro. A figura abaixo ilustra as formas tautoméricas do molnupiravir (EIDD-2801), indicando, à esquerda, o tautômero que mimetiza as interações do uridina, reconhecida pela adenosina, enquanto que à direita está mostrado o tautomêro da função oxima que imita as interações da citosina e interage preferencialmente com a guanosina.

O EIDD-2801, corresponde ao molnupiravir, desenvolvido originalmente para o tratamento da influenza e atuando por induzir erros durante a replicação viral. Este composto, foi adquirido pela Ridgeback Biotherapeutics, empresa situada em Miami, EUA, que fez uma parceria para desenvolvimento com a Merck-Sharp Dohme (MSD), culminando com a identificação das suas propriedades anti-SARS-CoV-2. Neste mês de outubro de 2021, a empresa americana divulgou resultados preliminares dos ensaios clínicos, que se mostraram bastante encorajadores para este composto, que foi capaz de reduzir o risco de hospitalização e óbitos em 50% dos pacientes de alto risco diagnosticados com Covid-19. Adicionalmente, a empresa divulgou que esta substância tem significativos efeitos protetores contra as variantes, delta, gama e mu do SARS-CoV-2. Estes resultados, ainda não publicados formalmente em periódicos científicos, têm sido muito bem recebidos pelos especialistas, especialmente por infectologistas familiarizados com a Covid-19, que se posicionaram de forma bastante otimista com a perspectiva de utilização do molnupiravir como o primeiro antiviral de uso oral, util para o controle da infecção pelo SARS-CoV-2.

Ao olhar da Química Medicinal, o comportamento molecular deste provável fármaco anti-Covid-19, resulta da existência dos tautômeros da função oxima presente no seu anel pirimidínico, que se apresentaram capazes de mimetizar a citosina ou a uridina, numa ação dual que induz a RNA-polimerase viral a promover inúmeras mutações, inviabilizando a correta replicação viral, num efeito denominado mutagênese viral letal. A identificação das propriedades anti-SARS-CoV-2 identificados no molnupiravir ilustram, mais uma vez, a importância da abordagem de reposicionamento para o combate da Covid-19.

Obrigado por ler.