Pesquisar este blog

domingo, 9 de junho de 2019

A Intuição em Química Medicinal

Li, já faz um bom tempo, uma frase de Corwin Hansch (1918-2011), considerado por muitos como o “pai do QSAR”, onde ele afirmava que o Químico Medicinal é o profissional da Ciência que lida com maior número de variáveis, concomitantemente. Esta sentença pode ser interpretada como um sinal de alerta para os grandes riscos inerentes ao processo de descoberta de um novo fármaco. De fato, pode-se ilustrar o nível de dificuldades ou imprevistos deste processo colocando-se a Química Medicinal num tabuleiro de xadrez! Neste jogo, a tomada de decisões é constante e nem sempre se dá em situações simples. Pessoalmente, gosto desta analogia. Considero o exercício da Química Medicinal como uma contínua partida de xadrez..., onde se joga com um time de jogadores, apoiando as decisões ou os movimentos do jogador que fica no tabuleiro!
     Mais recentemente li vários artigos, publicados em diferentes periódicos prestigiosos, sobre fatores que podem influenciar as “tomadas de decisões” do químico medicinal durante um projeto de drug discovery (DD). Cito apenas um, cujo título é bastante sugestivo: “....Inside the mind of a medicinal chemist...” (PS Kutchukian et al., PLoS One 2012, 7, e48476, DOI:10.1371/journal.pone.0048476.
Considero muito complicado escolher qualidades pessoais, que possam definir aptidões para se exercer determinadas funções ou atividades profissionais. Entretanto, arisco mencionar que em Ciência alguns fatores desejáveis podem ser a curiosidade e persistência, entre outros. Vários autores descrevem como atributos pessoais relevantes ao sucesso profissional de alguém, a criatividade, inteligência, experiência e por aí vai. Não vou por este caminho, meu ponto pode ser exemplificado pela lógica ou não (pela intuição) nas “tomadas de decisão” dos químicos medicinais envolvidos em projetos de DD.  Seja um problema simples, como aonde incluir um substituinte alquila em um anel benzênico terminal, em uma molécula promissora, que merece uma otimização. Sua inclusão pode se dar em três posições: para- (1), meta- (2) ou orto- (2), em relação ao substituinte já presente (R). A posição para- deverá ser a preferida, pois manifestará efeitos eletrônicos diretamente sobre a posição de R, sem que se introduza no anel aromático “dissemetria” que a posição meta- (2 posições) e orto- (2 posições) promoveriam, i.e. os “lados” do anel ficariam dissimétricos em razão do plano determinado pela ligação do substituinte R, e complicaria a racionalização do eventual efeito observado, por fatores conformacionais, ausentes no derivado com substituinte alquila em para- (1 posição). Além disso, a introdução do grupo alquila em orto- agrava as consequências conformacionais pelo efeito orto promovido pelo substituinte novo.
     De fato, os substituintes em para- predominam nas moléculas bioativas. Neste nosso exemplo não ficou definido a natureza do grupo alquila introduzido. Na figura aparece uma metila, mas sendo um grupamento alquila, poderia ser qualquer um, a priori. A decisão pela metila pode ser um exemplo de decisão intuitiva do químico medicinal.
     O químico medicinal confia em sua intuição para decidir ou tomar decisões em programas de pesquisas. Neste exemplo a decisão é simples, porém quando volumes enormes de dados são disponíveis envolvendo propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas de muitos compostos de várias séries congêneres a “tomada de decisão” requer priorizações bem mais difíceis. Senão, vejamos: considerando as 69 milhões de substâncias orgânicas cadastradas no Chemical Abstracts Service (CAS), os 36 milhões de registros científicos e patentes, vê-se que o espaço químico conhecido é imenso e em contínuo crescimento. Os 3 milhões de químicos ativos no mundo publicaram mais de 800.000 documentos, contendo inúmeras novas moléculas. O número de pedidos de patentes em química atingiu 340.000, descrevendo mais substâncias. Metade dos medicamentos existentes em 1996, podiam ser descritos pelos 32 scaffolds mais frequentes e suas 20 principais cadeias laterais representavam 73% do total identificado em todos os medicamentos comercializados na época. Dados mais recente indicam que são 1060 moléculas passíveis de apresentarem propriedades necessárias aos fármacos, sendo que os 50 principais scaffolds estão presentes em 50-52% das moléculas dos medicamentos utilizados. Inúmeros autores afirmam que os anéis aromáticos são os principais scaffolds dos fármacos contemporâneos. Por tudo isso, vê-se que a intuição química, frequentemente utilizada pelos químicos medicinais hábeis e experientes, é um fator bem reconhecido, no complexo processo de “tomada de decisões” da Química Medicinal.

          Obrigado por lerem.