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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A morfina, o ácido acetil salicílico e o tempo dos fármacos pioneiros.



Esta é a quadragésima oitava postagem que provavelmente vai fechar 2015. Pensei que chegaria à quinquagésima neste ano, mas não deu. Tant pis!

            Algumas moléculas de fármacos têm características particulares, seja sob o ponto de vista estrutural, seja sob a ótica conceitual ou até histórica. É o caso da morfina e do ácido acetil salicílico (AAS), nosso tema da vez.

Embora ambos sejam fármacos analgésicos, têm origens bem distintas, diferentes histórias, estruturas e mecanismos farmacológicos de ação (MoA). Desde já fica claro que “obedecem” ao princípio da similaridade molecular. Ou seja: moléculas similares, propriedades similares! Embora classificados como analgésicos, as dissimilaridades moleculares são flagrantes, indicando que o MoA teria de ser obviamente distinto.
Qualquer que seja a fonte consultada, sobre a origem dos fármacos, ambos estarão, muito provavelmente presentes, ilustrando o tema. A história da morfina é clássica, se pudermos dizer assim. Pode-se apre(e)nder muita Química Medicinal, conhecendo-a. Foi trazida por Marco Polo do Oriente para a praça San Marco, em Veneza e cedo se descobriu suas potentíssimas propriedades analgésicas centrais, denominando-a como um potente fármaco hipno-analgésico. Foi amplamente estudada desde seu isolamento e purificação pelo farmacêutico alemão Friedrich Setürner, em 1805, que homenageou suas propriedades narcóticas pela denominação emprestada de Morpheu, Deus do sono. Estudos de strip-tease molecular levaram à classe das N-metil-4-fenilpiperidinas, primeiros analgésicos centrais sintéticos, oriundos da morfina. A identificação dos seus sub-tipos de receptores centrais e o reconhecimento da existência das endorfinas são também decorrentes de sua descoberta.
 

Enquanto a morfina tem este caráter pioneiro dentre os alcaloides fenantrênicos, o AAS tem sua marca pioneira por ter sido o primeiro fármaco sintético produzido industrialmente como tal pela Bayer, também na Alemanha. Além de serem, por que não, moléculas “conterrâneas”, também motivaram prêmios Nobel! A primeira devido ao excelente trabalho de elucidação estrutural realizado por Sir Robert Robinson, em 1925, que ganhou o prêmio de Química em 1947. Interessante observar que a estrutura da morfina tem na parte “norte” do esqueleto pentacíclico um sítio básico, ionizável, referente à presença da função amina terciária endocíclica e na parte “sul” da molécula os grupos funcionais oxigenados, que podem contribuir com ligações-H, doadores e aceptores, para interações com os biorreceptores. De certa forma, a morfina respeita as regras de Lipinsky..., embora este não as tenha criado para ela. Aliás, nem sempre assim é com os fármacos de origem natural e as regras....! Há mais um elo interessante entre a morfina e o AAS! Lá pelos idos do século dezenove a reação da moda na química orgânica, era a acetilação. Mais ou menos tudo que fosse acetilável, era acetilado! Já vimos um pouco disso na postagem denominada “Os acetatos famosos”. Quando a morfina foi bis-acetilada, na Bayer, em 1874, obteve-se a heroína ou a 3,6-diacetilmorfina, que tendo maior lipofilia apresentou efeitos centrais mais potentes. Esta acetilação foi apenas alguns anos anterior à acetilação do ácido salicílico, feita por Albert Hoffmann, nos mesmos laboratórios da Bayer, visando reduzir seus efeitos gastro-irritantes e melhorar suas propriedades analgésicas. O AAS também motivou um prêmio Nobel, agora de Fisiologia e Medicina, em 1982, a três pesquisadores pela elucidação de seu mecanismo farmacológico de ação. Foram eles: John R Vane, Bengt Samuelsson e Sune Bergström. Curiosamente, o AAS não teve nenhum respeito pelas regras do Sr Lipinsky...., mas é um dos fármacos mais utilizados do mundo, sendo que o total do que se consome de AAS mundialmente pode coloca-lo na escala superior à 50000 toneladas/ano (uma escala “quase petroquímica”).  Enquanto isso, o uso de morfina como analgésico foi estimado em 45000 kg, em 2013...!
            A complexa estrutura química da morfina atraiu o interesse de muitos químicos orgânicos de síntese. Sua primeira síntese total foi realizada na Universidade de Rochester, EUA, por Marshall D. Gates, Jr., em 1952. Depois disso muitas outras vieram como a descrita por K. C. Rice, em 1980; David Evans, em 1982; P. L. Fuchs,em 1988; K. A. Parker, em 1992; L. E. Overman, em 1993; Joham Mulzer, em 1996;  J. D. White, em 1999; D. F. Taber e B. Trost, independentemente, em 2002; T.  Fukuyama, em 2006; C.  Guillou, em 2008 e Gilbert Stork em 2009, sendo esta a única rota estereosseletiva para a morfina, realizada dois séculos depois de seu isolamento!

Finalmente, se a morfina com seus 17 átomos de carbono distribuídos em seu sistema pentacíclico com 5 centros estereogênicos, foi responsável pela premiação de um nobelista, o AAS com apenas 9 átomos de carbono e sem nenhuma complexidade molecular, nem quiralidade, “premiou” três nobelistas, uma média de um premiado para cada 3 de seus 9 átomos de carbono!!! Ótima média, não?!


Boas Festas e obrigado por lerem.